30 dezembro 2006

Libação


É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura(...)

É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la,
não roê-la com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la, cheio que é o seu princípio

Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido do estado potencial de futuro

Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil, da ninharia,
nos protejam da vaidade burra,
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz daquilo que ao nos aumentar nos amesquinha.

A vida não tem ensaio mas tem novas chances

Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores

Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!

Elisa Lucinda

23 novembro 2006

É urgente o Amor


É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade


Este lindo poema e foto foram publicados pela amiga MAAT no seu maravilhoso blog http://ardeoazul3.blogspot.com/

09 outubro 2006

HORA

Foto de Armildo Schneider

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.


Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

23 setembro 2006

Preciso de Alguém

Foto de Henri Cartier-Bresson

Que me olhe nos olhos quando falo.
Que ouça as minhas tristezas e neuroses com paciência .
E, ainda que não compreenda, respeite os meus sentimentos.

Preciso de alguém que venha brigar ao meu lado
Sem precisar ser convocado;
Alguém amigo o suficiente para
Dizer-me as verdades que não quero ouvir,
Mesmo sabendo que posso odiá-lo por isso.

Nesse mundo de céticos, preciso de alguém que creia
Nessa coisa misteriosa, desacreditada, quase impossível:
a Amizade.

Num mundo de inimigos só preciso de um amigo
Que teime em ser leal, simples e justo,
Que não vá embora se algum dia eu perder o meu ouro
E não for mais a sensação da festa.

Preciso de um amigo que também seja companheiro
Nas farras e pescarias,
De guerras e alegrias, e que no meio da tempestade
Grite em coro comigo:
“Nós ainda vamos rir muito disso tudo”
E ria muito.

Não pude escolher aqueles que me trouxeram ao mundo
Mas posso escolher meu amigo,
E nessa busca empenho minha própria alma,
Pois com uma amizade verdadeira
A vida se torna mais simples, mais rica e mais bela.

Autor desconhecido

Nota: Se souber a autoria desse texto, escreva para mim, que eu a publicarei aqui.

16 setembro 2006

A Nossa Casa

Pintura ©Monet

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

©Florbela Espanca


Nota: Esse poema foi extraído do lindo livro POEMAS de Florbela Espanca que ganhei de um querido amigo essa semana. Há diversos sites na internet com poemas da poetisa portuguesa. Vou divulgar alguns deles:

Vidas Lusófonas - Florbela Espanca e Revista Agulha - Poemas

10 setembro 2006

Brigam

Fotografia da Internet

Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
O mar é das gaivotas
Que nele sabem voar
O mar é das gaivotas
E de quem sabe navegar.

Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
Brigam Espanha e Holanda
Porque não sabem que o mar
É de quem o sabe amar.

©Leila Diniz

29 agosto 2006

Lagoa dos Patos


Foto de Marcos Viana - morador de São Lço do Sul

Lá no fundo da lagoa
Dorme uma saudade boa
Longe desse céu sereno
O coração pequeno
E vazio ficou
Sei que a vida içou as velas
Mas em noites belas
Sou navegador

Lá no fundo da lembrança
Dorme um resto de esperança
De voltar à vida a toa
À beira da lagoa
Só molhando o pé
Seja em Tapes, São Lourenço
Barra do Ribeiro ou Arambaré

Lagoa dos Patos
Dos sonhos, dos barcos
Mar de água doce e paixão

Ah! Essa canção singela
Eu fiz só pra ela
Não me leve a mal
Ela que é filha da lua
Que ilumina as ruas
Lá do Laranjal.

Letra e Música de Kleiton & Kledir

Nota: essa canção me faz lembrar uma fase maravilhosa da minha vida!
São Lourenço do Sul é a cidade que minha mãe nasceu - também conhecida como a "Pérola da Lagoa".

Visite a página do Kleiton & Kledir: http://www.kleitonkledir.com.br/index2.html

18 agosto 2006

Sexo Frágil

Fotografia: ©Henri Cartier-Bresson


Quantas mentiras nos contaram; foram tantas que a gente bem cedo começa a acreditar e, ainda por cima, se achar culpada por ser burra, incompetente e em condições de fazer da vida uma sucessão de vitórias e felicidades.

Uma das mentiras: que nós, mulheres, podemos conciliar perfeitamente as funções de mãe, esposa, companheira e amante, e ainda por cima ter uma carreira profissional brilhante.

É muito simples: não podemos.

Quando você se dedica de corpo e alma a seu filho recém-nascido, que na hora certa de mamar dorme e que à noite, quando devia estar dormindo, chora com fome, não consegue estar bem sexy quando o marido chega, para cumprir um dos papéis considerados obrigatórios na trajetória de uma mulher moderna: a de amante.
Aliás, nem a de companheira; quem vai conseguir trocar uma idéia sobre a poluição da Baía de Guanabara se saiu do trabalho e passou no supermercado rapidinho para comprar uma massa e um molho já pronto para resolver o jantar, e ainda por cima está deprimida porque não teve tempo de fazer uma escova?

Mas as revistas femininas estão aí, querendo convencer as mulheres e os maridos - de que um peixinho com ervas no forno com uma batatinha cozida al dente, acompanhado por uma salada e um vinhozinho branco é facílimo de fazer - sem esquecer as flores e as velas acesas, claro - e com isso o casamento continuar tendo aquele toque de glamour fun-da-men-tal para que dure por muitos e muitos anos.

Ah, quanta mentira!

Outra grande, diz respeito à mulher que trabalha; não a que faz de conta que trabalha, mas a que trabalha mesmo. No começo, ela até tenta se vestir no capricho, usar sapato de salto e estar sempre maquiada; mas cedo se vão as ilusões.

Entre em qualquer local de trabalho pelas 4 da tarde e vai ver um bando de mulheres maltratadas, com o cabelo horrendo, a cara lavada, e sem um pingo do glamour – aquele – das executivas da Madison.

Dizem que o trabalho enobrece, o que pode até ser verdade. Mas ele também envelhece, destrói e enruga a pele, e quando se percebe a guerra já está perdida.

Não adianta: uma mulher glamourosa e pronta a fazer todos os charmes, aqueles que enlouquecem os homens - precisa, fundamentalmente, de duas coisas: tempo e dinheiro. Tempo para hidratar os cabelos, lembrar de tomar seus 37 radicais livres, tempo para ir à hidroginástica, para ter uma massagista tailandesa e um acumpunturista que a relaxe; tempo para fazer musculação, alongamento, comprar uma sandália nova para o verão, fazer as unhas, depilação; e dinheiro para tudo isso e ainda para pagar uma excelente empregada o que também custa dinheiro.

É muito interessante a imagem da mulher que depois do expediente vai ao toalete - um toalete cuja luz é insuportavelmente branca e fria retoca a maquiagem, coloca os brincos, põe a meia preta que está na bolsa desde amanhã e vai, alegremente, para uma happy hour.

Aliás, se as empresas trocassem a iluminação de seus elevadores e de seus banheiros por lâmpadas âmbar, os índices de produtividade iriam ao infinito; não há auto-estima feminina que resista quando elas se olham nos espelhos desses recintos.

Felizes são as mulheres que têm cinco minutos - só cinco - para decidir a roupa que vão usar no trabalho; na luta contra o relógio o uniforme termina sendo preto ou bege, para que tudo combine sem que um só minuto seja perdido.

Mas, têm as outras, com filhos já crescidos: essas, quando chegam em casa, têm que conversar com as crianças, perguntar como foi o dia na escola, procurar entender por que elas estão agressivas, por que o rendimento escolar está baixo. E ainda têm as outras que, com ou sem filhos, ainda têm um namorado que apronta, e sem o qual elas acham que não conseguem viver (segundo um conhecedor da alma humana, só existem três coisas sem as quais não se pode viver: ar, água e pão).

Convenhamos que é difícil ser uma mulher de verdade; impossível, eu diria.

©Danuza Leão

13 agosto 2006

Quem é essa mulher ?

"Eu não tenho coragem. Coragem tinha meu filho. Eu tenho legitimidade"
Zuzu Angel


Foto do Filme ZUZU ANGEL


Angélica
Chico Buarque
Composição: Miltinho/Chico Buarque


Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele não pode mais cantar

Veja as fotos, leia a sinopse do filme e escute essa bela canção do Chico no site oficial do filme:
http://wwws.br.warnerbros.com/zuzuangel/

03 agosto 2006

Canção Amiga


de Carlos Drummond de Andrade



Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

31 julho 2006

100 anos do MARIO QUINTANA



Gosto tanto do poeta Mario Quintana, que é como se o encontrasse nas esquinas dos livros ou nos cafés de poesia...

Gosto da cor do seu poema azul, do senso de humor de passarinho, sua ingenuidade no olhar de criança ou nas travessuras do vôo de anjo torto em forma de poesia.

Nas andanças pelos muitos sebos de Porto Alegre, minha cidade natal e cidade em que Quintana viveu quase toda a vida - encontrei na Feira do Livro uma pequena preciosidade: “Ora Bolas – Humor Cotidiano de Mario Quintana – 121 Historinhas Compiladas e Adaptadas por Juarez Fonseca.

Vou dividir alguns trechos com vocês:

RIMAS
No atropelamento, Quintana quebrara o fêmur esquerdo e deveria submeter-se a uma cirurgia para colocação de prótese. Os médicos preocupavam-se com a idade dele, 79 anos e anteciparam que a recuperação poderia ser lenta. Ele permaneceria alguns dias no hospital. Paciência, ora bolas.

- Lá vou ter bastante tempo para trabalhar. Só que agora meus poemas vão sair de pé-quebrado...

E ao saber que a prótese seria de platina:
- Ah! Agora sim, vou ser um poeta de valor...

INTERVALO
Para comemorar os 60 anos do poeta, em 1966 a Editora do Autor, do Rio de Janeiro, lançou a Antologia Poética de Mario Quintana, na coleção em que já publicara Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e outros.

Dois dias antes da tarde de autógrafos do lançamento Quintana foi homenageado em sessão especial na Academia Brasileira de Letras, sendo saudado por seu conterrâneo Augusto Meyer e por Manuel Bandeira. Para a ocasião Bandeira fez um poema que se tornaria célebre, “A Mario Quintana”, aquele dos Quintanares. Foi ele quem escreveu a carta convidando o gaúcho a ir ao Rio para a homenagem.
Quintana respondeu que não era um convite, mas uma ordem. E acrescentou: “Mas você não imagina como sou chato no intervalo dos poemas”.

É dessa época a famosa fotografia em que aparecem juntos, pela primeira e única vez, Quintana, Drummond, Bandeira, Vinicius e o organizador da antologia, Paulo Mendes Campos.

DISTÂNCIAS
Em 1982 Mario viajou muito. Primeiro por “umas dezesseis cidadezinhas” do interior do Rio Grande do Sul, depois foi até Recife, depois Belém do Pará, com escala no Rio. Mal chegado, foi convidado para ir a Capão da Canoa, a pouco mais de uma hora de distância de Porto Alegre. Recusou:
- Não. É muito longe!

CORES
Mais um convite para ir ao interior. Depois do sim do poeta, o satisfeitíssimo secretário municipal de Educação e Cultura combina detalhes da viagem e quer saber se ele tem preferência por alguma marca de automóvel.

- Marca não, a cor sim. Azul.

DE GRAÇA
O primeiro livro que Quintana traduziu para a Editora Globo foi Palavras e Sangue, de Giovanni Papini, no início dos anos 30. Depois seguiram ótimas traduções de Joseph Conrad, André Gilde e outros, até a Globo, confiante, passar-lhe Proust. Escrevendo à mão, traduzia ao correr da pena, como lembra Carlos Reverbel, que dividia uma sala com ele. Era direto, praticamente sem ajuda do dicionário. Um dia ele comentou com Érico Veríssimo (ou teria sido Henrique Bertaso?):
- Estou gostando tanto de traduzir Proust que, se tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês...

NO ESCURO
Nos últimos tempos Mario gostava de ficar deitado no escuro, quieto, e queria que alguém ficasse com ele. Um dia Elena protestou:
- Mas tio, o que eu vou ficar fazendo aqui nesta escuridão?

- Senta aí e simplesmente me adora...

DESVANTAGEM
Quase meia-noite de um dia de inverno, chuva fininha lá fora, e naqueles tempos não havia essa preocupação com crachás, nem seguranças pedindo identidades de visitantes. Mario ainda está na redação quando irrompe um rapaz, de capa de náilon – daquelas que se dobrava até ficaram do tamanho de um envelope.

Pingando água, foi direto a mesa de Mario, deu boa noite e abriu a capa, tirando um bolo de folhas de papel almaço já meio respingadas. Eram sonetos manuscritos. Esclareceu o motivo da visita àquela hora:
- Seu Mario, vim trocar algumas idéias como Senhor.

Impávido o poeta reagiu:
- Não aceito! Vou sair perdendo...

Mas deu sua gargalhada característica e ficou lá, conversando com o sonetista.

23 julho 2006

EU QUISERA

Pintura de Gustav Klimt

Eu quisera que encontrasses
em meus olhos todas as
respostas que não sei te dizer

Eu quisera não precisar
de palavras para que
compreendesses todos os meus pensamentos

Eu quisera que tivesses a total
segurança de sempre e que seja
como for...
A teu lado estarei

Eu quisera que procurasses
dentro de mim tudo o que
ainda não consegui encontrar

Eu quisera que estivesses
realmente segura de que és tudo para mim...

Eu quisera que todo o meu ser
não tivesse um
segredo para ti...

Eu quisera muitas coisas!
Mas resumindo...
Eu só quero...
Que tu me queiras.

IYAD BEN AHMED

30 junho 2006

IMAGINE


Desenho de ESCHER


Imagine um lugar para trabalhar onde o medo foi substituído pela esperança e confiança.

Onde todos os funcionários acreditam que a Companhia também é deles.

Onde nós controlamos os processos e não as pessoas.

Onde nós encaramos os problemas como oportunidades e os enfrentamos procurando descobrir o que está errado e não quem está errado ou quem é o culpado.

Onde nós medimos os sistemas, em vez das pessoas e definimos procedimentos, em vez de autoridade.

Onde perguntamos:"como posso ajudá-lo?, em lugar de dizer "isto não faz parte do meu trabalho."

Imagine uma Companhia onde trabalhamos juntos, como uma equipe, para sermos os melhores dentre os melhores.

Onde buscamos uma resposta para cada problema, em vez de vermos um problema em cada resposta.

Onde o único erro é repetir um erro e a única verdadeira falha é a falha de não tentar.

Imagine uma Companhia onde os gerentes são professores, auxiliares, em vez de simplismente chefes, feitores.

Onde temos disciplina nos processos, em vez de disciplinarmos os funcionários.

Onde o significado da palavra responsabilidade está vinculado a uma obrigação de contribuir e não ao exercício do autoritarismo.

Imagine um ambiente construído sobre uma base de confiança e respeito. Onde as idéias de todos são bem-vindas e os funcionários são valorizados pela sua contribuição intelectual.

Imagine uma empresa onde o pessoal diz:"pode ser difícil, mas é possível", em vez de "pode ser possível, mas é muito difícil".

Imagine uma Companhia onde o medo de ser franco, leal e honesto foi substituído por um ambiente de fraqueza sem medo.

Imagine, imagine e acredite.


*texto extraído do livro:
"Gestão de pessoas" de Sylvia Constant Vergara

09 junho 2006

O Moço

Pintura de Matisse


de Moacir Sacramento, o Moa

Não me pergunte quantos anos tenho;
e sim,
quantas cartas mandei e recebi.
Se mais jovem, se mais velho... o que importa,
se ainda sou um fervilhar de sonhos,
se não carrego o fardo da esperança morta!

Não me pergunte quantos anos tenho;
e sim,
Quantos beijos troquei - Beijos de amor!
Se a juventude em mim ainda é festa,
se aproveito de tudo a cada instante
e se eu bebo da taça gota a gota...
Ora! Então pouco se me dá que gota resta!

Não me perguntem...
mas...
queiram saber de mim se criei filhos,
queiram saber de mim que obras eu fiz,
queiram saber de mim que amigos tenho
e se alguém, pude eu tornar feliz.

Não me perguntem...
mas...
queiram saber de mim que livros li,
queiram saber de mim por onde andei,
queiram saber de mim quantas histórias,
quantos versos ouvi, quantos contei.

E assim, somente assim, todos vocês
por mais brancos que estejam meus cabelos,
por mais rugas que vejam no meu rosto,
terão vontade de chamar-me: o moço!
E ao me verem passar aqui... ali...
não saberão ao certo minha idade,
mas saberão, por certo, que eu vivi!

15 maio 2006

Pense em Mim

Pablo Picasso


Se você me ama, não chore. Se você conhecesse o mistério insondável do céu onde me encontro...
Se você pudesse ver e sentir o que eu sinto e vejo nesses horizontes sem fim e nesta luz que tudo alcança e penetra, você jamais choraria por mim.

Estou agora absorvido pelo o encanto de Deus, pelas suas expressões de infinita beleza. Em confronto com esta nova vida as coisas do tempo passado, são pequenas e insignificantes.

Conservo ainda todo meu afeto por você e uma ternura que jamais lhe pude, em verdade revelar Amamo-nos ternamente em vida, mas tudo era então muito fugaz e limitado.
Vivo na serena expectativa de sua chegada, um dia...entre nós.

Pense em mim assim: nas suas lutas pense nesta maravilhosa morada onde não existe a morte e onde, juntos, viveremos no enlevo mais puro e mais intenso, junto à fonte inesgotável da alegria e do amor.

Se você verdadeiramente me ama, não chore mais por mim.


"EU ESTOU EM PAZ"

Desconheço a autoria.



Nota: Se você conhece o autor desse texto, envie para mim,
que uma vez comprovada autoria, publicarei o crédito aqui.

11 abril 2006

FERNANDO em PESSOAS


AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda,
Gira, a entreter a razão,
Essse combóio de corda
Que se chama coração.


Fernando Pessoa


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POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos


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Para ser grande

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ode de Ricardo Reis


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Quando eu não te tinha...


Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora Amo a Natureza como um monge calmo a Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima...

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até a beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim.

Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e para te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Por que ainda o sou.


Alberto Caeiro


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914


05 abril 2006

Versões


de Luis Fernando Veríssimo

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido. Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número ("Unzinho e eu ganhava a sena acumulada"), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito "sim", dito "não", ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste... Agora mesmo neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome do bar é "Imaginário" - sentou um cara do meu lado direito e se apresentou.

- Eu sou você se tivesse feito aquele teste no Botafogo.

E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo. Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?

- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até um dia...

- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado do outro lado dele.

Olhamos para o intrometido. Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:

- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.

- Como é que você sabe?

- Eu sou você se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um "herói", me atirei. Levei um chute na cabeça. Não pude mais ser goleiro. Não pude mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INPS e só faço isso: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante...

- Ele chutaria para fora.

Quem falou foi outro sósia nossa, ao lado dele, que em seguida se apresentou.

- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e agora com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio...

- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono.

- Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?

- Você...

- Morri com 28 anos.

Bem que tínhamos notado a sua palidez.

- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...

- Nem sair do gol naquela bola...

- E ter levado o chute na cabeça...

- Foi melhor - continuei - ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...

- Você deve estar brincando - disse alguém sentado à minha esquerda.

Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.

- Quem é você?

- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.

Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas."

- Quem é você? - perguntei.

- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.

- E?

Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo.


Sites visitados do Veríssimo:
http://www.releituras.com/lfverissimo_bio.asp
http://portalliteral.terra.com.br/verissimo/

31 março 2006

Martha Medeiros



Só é mal educado quem quer

Uma pessoa faz uma gentileza pra você: manda um pão feito em casa pra você provar, ou empresta um livro raríssimo, ou indica um médico sensacional. Tempos atrás, você tinha duas maneiras de agradecer: telefonava ou enviava um telegrama, cartão, carta. Telefonar significa ter que dedicar um tempo pra conversa, e ainda arriscar invadir a privacidade de alguém numa hora imprópria. E telegrama? Pra alguns, é uma mão de obra ligar para os Correios, descobrir o endereço do destinatário, etc. Hoje existe um método muito mais fácil, rápido e indolor de ser cordial: o e-mail. Quem tem acesso à Internet em casa ou no trabalho não tem desculpa para ser grosso. Nunca foi tão fácil cumprimentar por um aniversário, desejar que alguém se saia bem numa prova, agradecer um jantar, justificar uma ausência, elogiar uma promoção, desculpar-se por uma gafe. Em duas frases, o carinho está feito, sem perda de tempo e sem constrangimentos. Conheço pessoas cuja timidez acaba parecendo falta de educação. A pessoa se atrapalha, não sabe o que fazer com as mãos nem que palavras usar, e acaba deixando passar a oportunidade de dizer "obrigado" ou "desculpe". O e-mail resolve isso. É o aliado número 1 dos tímidos, dos gagos, dos que ficam vermelhos por qualquer coisa, dos que não têm presença de espírito, dos bichos-do mato: pare, pense, escreva e envie. Pronto, você não é mais tímido nem gago nem nervosão: é um sujeito adorável. Pequenas gentilezas, na verdade, não são pequenas coisa nenhuma: serão sempre imensas. A gente fica esperando grandes ações pacifistas dos líderes mundiais e acaba não exercitando esse pacifismo no dia-a-dia, nas relações humanas. Algumas pessoas consideram a gentileza uma forma de submissão, de fraqueza, e acabam elegendo a arrogância e o desprezo como atitude. Pra estes, não existe solução, serão babacas eternos. Mas para quem anda esquecendo de exercer a gentileza apenas por falta de estímulo, está aí uma dica banal e eficientíssima: use o computador que está na sua frente. Gentileza não é puxa-saquismo. É um hábito elegante, dietético e despoluente: sério, perde-se peso existencial e até o ar que a gente respira fica mais leve.

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Martha Medeiros é gaúcha e ficou conhecida em todo o Brasil através do sucesso da peça Divã, estrelada por Lilia Cabral, baseada em um romance homonimo da autora. Colunista de dois jornais de grande circulação, um no Rio de Janeiro e outro em Porto Alegre, autora de 14 livros publicados, Martha tem o dom de colocar no papel idéias e situações que representam o cerne do nosso dia-a-dia. Relacionamentos, trabalho, amizade. Está tudo ali, destrinchado pela autora, nos fazendo olhar e repensar as pequenas coisas que fazem parte do cotidiano de cada um.

Fonte de Pesquisa:
http://www.cafeliterario.jor.br/perfil_literario/marthamedeiros.html
http://almas.terra.com.br/martha/martha_anteriores.htm

25 março 2006

Fabrício Carpinejar


NÃO HÁ COMO VOLTAR ATRÁS,
MUITO MENOS IR PARA FRENTE


Nada mais vai nos interromper. Os telefones, os gritos da rua, as visitas batendo na porta. Nada mais vai nos interromper. O terror de dizer, o terror de não dizer. Nada mais vai nos interromper. Minha ausência de culpa, seu excesso de culpa. Nada mais vai nos interromper. Sua pressa em fugir, minha pressa em entrar, o fingimento que não é conosco. Nada mais vai nos interromper. As conversas dos amigos, os dialetos de vidro, os desvios da cintura. Nada mais vai nos interromper. Os conselhos da família, seu casamento, as reuniões de trabalho. Nada mais vai nos interromper. Seus gatos, meus cachorros, os pássaros que morreram no domingo. Nada mais vai nos interromper. Pode esconder os lábios, que eu dou a volta no quarteirão. Nada mais vai nos interromper. Sua timidez, minha coragem, as esmolas dos pombos. Nada mais vai nos interromper. Pode envelhecer, que eu cedo meu lugar, cedo minha vida pelo teu lugar. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja a hora, mesmo que não seja a hora, mesmo que a gente tenha nascido para ficar longe. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja uma relação proibida, um contrabando, saudade usada. Nada mais vai nos interromper. Haverá unhas, haverá pele, haverá um jeito de escrever escondido e marcar um encontro. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que tenha que voltar ao início da fila. Nada mais vai nos interromper. As crianças, o trânsito, a falta de convicção. Nada mais vai nos interromper. Estamos tão rentes que recuar é ainda se tocar. Nada mais vai nos interromper. Sua respiração é como uma palavra indecisa. Nada mais vai nos interromper. A escama das lâmpadas, o gorjeio sofrido das árvores, a esperança da mentira. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que a gente desista, a gente se cale, a gente deixe de comparecer. Nada mais vai nos interromper. O orgulho, o preconceito, o capricho das roupas separadas. Nada mais vai nos interromper. Errar a música de ouvido, o instinto de se preservar, o arrependimento. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que um só ajude o outro a se perder. Nada mais vai nos interromper. Estar a favor de Deus, estar contra Deus, ajoelhar-se como um barco a seco. Nada mais vai nos interromper. Nossa falta de grana, os telhados das igrejas, o vestido branco. Nada mais vai nos interromper. Os despojos do dilúvio, os talheres tortos, os sapatos tontos na janela. Nada mais vai nos interromper. Pecar distrações, pescar desaforos, penhorar os anéis. Nada mais vai nos interromper. Contar segredos, guardar segredos, o degredo. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo regressando. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo partindo. Nada mais vai nos interromper. A leveza que some antes de entender, a letra que germina antes de rastejar, a crueldade da infância. Nada mais vai nos interromper. O desequilíbrio, o sarcasmo, a ânsia de fechar o livro. Nada mais vai nos interromper. As casas mal-assombradas, os barulhos dos becos, as bicicletas acorrentadas. Nada mais vai nos interromper. As cadeiras sobre a mesa, a denúncia, a fofoca. Nada mais vai nos interromper. Se é certo fazer, se é errado fazer, se é justo acreditar. Nada mais vai nos interromper. A educação, o sentido, o semáforo. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que não tenhamos provas de que houve alguma coisa, mesmo que o vento seja insinuação de chuva, mesmo que as pálpebras da água não substituam as nossas. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja aconselhável a amizade, mesmo que seja aconselhável esquecer, mesmo que seja aconselhável não mudar. Nada mais vai nos interromper. Nem a nossa própria resistência em aceitar que seremos para sempre esquisitos depois de nosso amor.


Este maravilhoso texto foi postado no blog do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar.
Recomendo como leitura diária: http://www.carpinejar.blogger.com.br/

11 março 2006

LEGADO, de Lya Luft



Eu quero o delírio.
Eu sou assim.
Não pretendo a integração, mas a abertura e a busca.
Encontrar pode ser impossível ou desinteressante.
Quero o pressentimento: comprimir a tela do computador e explodir o ponto e arquear o contorno varando os limites que a vida há de preencher e o sonho tornará possível.

Quero o delírio que faça as utopias virem sentar-se
na minha varanda e escrever no meu computador
quando a Razão estiver cansada,
quando a técnica parecer frívola,
ou quando eu estiver descrente.
Posso lhes dizer que somos muitos: em cada um de nós outros esperam apenas o momento de saltar fora,
tirar a máscara e revelar o que talvez nos amedronte.
E diremos: - Mas isso, isso aí, também sou eu?


Preciso admitir que a ambivalência nos salva de morrermos na poeira da mesmice. Também admito que seria mais fácil ser sempre o mesmo, seria mais doce levantar a cada manhã sem o conflito e morrer enfim sem ter jamais duvidado.
Mas não é tão simples. Desculpem mas não somos só isso.
Posso falar por mim ao menos, esta que escreve de um jeito e vive de outro, pensa de um modo mas faz diferente, tendo a marca da incoerência na testa e no coração a miragem da explicação para todos os desencontros.

Escuto o meu interior, onde personagens e narrativas aguardam que eu lhes confira a sua falsa realidade. Não falo de personagens e frases apenas, mas da consciência que procura motivo e sentido.
Estou bem acompanhada, comigo estão meus irmãos, gente da minha raça, todos os que entendem que inventar ou constatar não faz a menor diferença. Somos os doidos, os palhaços, os atores de nossa própria vida: escrevemos com sangue - nas paredes, nas páginas e nas telas dos computadores: tudo só existe na medida em que o tiramos das nossa tripas e parimos do Nosso Sonho.

Mas também sou uma mulher do meu tempo, e dele
quero dar testemunho do jeito que posso: na elaboração das minhas fantasias, mas igualmente escrevendo sobre a dor e perplexidade, sobre a doença e a morte, a palavra na hora errada e o silêncio na hora em que teria sido melhor falar - mas a gente não sabia.
E escrevo sobre sermos responsáveis e inocentes
em relação ao que acontece e ao Legado que deixamos. A ambivalência que atormenta, por outro lado levanta a poeira da resignação - e faz aparecer o nosso rosto.
E nos salva.

Este texto faz parte do livro PENSAR É TRANSGREDIR, de Lya Luft.

10 março 2006

"Caderno H" de Mario Quintana

A Arte de Ler
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

A Coisa
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

A Voz
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.

Ars Longa
Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.

Arte Poética
Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.

Biografia
Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.

Cartaz para uma feira do livro
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

Contradições
... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas.
Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

Cuidado
A poesia não se entrega a quem a define.

Das Escolas
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.

Destino Atroz
Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.

Do Estilo
O estilo é uma dificuldade de expressão.

Dos Leitores
Há leitores que acham bom o que a gente escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade, até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.

Dos Livros
Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

Dupla Delícia
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

Educação
O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.

Fatalidade
O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.

Feira de Livro
O que os poetas escrevem agrada ao espírito, embeleza a cútis e prolonga a existência.

Leitura
Se é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões.

Leituras
— Você ainda não leu O Significado do Significado? Não? Assim você nunca fica em dia.
— Mas eu estou só esperando que apareça. O Significado do Significado do Significado.

Lógica & Linguagem
Alguém já se lembrou de fazer um estudo sobre a estatística dos provérbios? Este, por exemplo: "Quem cospe para o céu, na cara lhe cai". Tal desarranjo sintático faria a antiga análise lógica perder de súbito a razão.

O Assunto
E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.

O Poema
O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.

Palavra Escrita
Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.

Poema
Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...

Poesia & Lenço
E essa que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!

Poesia & Peito
Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.

Refinamentos
Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.

Ressalva
Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.

Sinônimos
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

Sonho
Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Tempo
Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.

Veneração
Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.

Vida
Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.


Pensamentos extraídos do livro "Do Caderno H",
Editora Globo - Porto Alegre, 1973, págs. diversas.
Fonte: http://www.releituras.com/mquintana_cadernoh.asp

09 março 2006

Mario Quintana por Mario Quintana



Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

08 março 2006

Esse Ofício do Verso

O fato central da minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia...

Jorge Luis Borges



Creio que Emerson escreveu em algum lugar que uma biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos e aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta a vida quando se abrem suas páginas.

Li certa ocasião que o pintor americano Whistler estava num café em Paris, e pessoas discutiam como a heditariedade, o ambiente, a situação política da época etc. influenciavam o artista. E Whistler então disse: “A arte acontece”. Quer dizer, existe algo misterioso sobre a arte. Gostaria de conferir a suas palavras novo sentido. Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema.

“We are stuff as dreams are made on”
[Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos]
Shakespeare


Num dos diálogos de Platão, ele fala dos livros de um modo um tanto depreciativo: “O que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto”. Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou - felizmente para nós - o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor.

Chuan Tzu, filósofo chinês, sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.

"Ode a um rouxinol de John Keats

Não nasceste para a morte, Pássaro imortal!
Nenhuma geração faminta te espezinha;
A voz que ouço nesta noite fugaz foi ouvida
Nos dias antigos por imperador e palhaço:
Talvez a mesmíssima canção que se insinuou
Pelo triste coração de Rute, quando, saudosa de casa,
Ela se desfazia em lágrimas entre o milharal alheio."


Pensava saber tudo de palavras, tudo de linguagem (de pequeno, a pessoa acha que sabe muitas coisas). Mas aquelas palavras foram uma revelação para mim. Claro, eu não as entendia. Como poderia entender aqueles versos sobre pássaros - sobre animais - que eram de algum modo eternos, intemporais, porque viviam no presente? Somos mortais porque vivemos no passado e futuro - porque lembramos um tempo em que não existíamos e antevemos um tempo em que estaremos mortos.

Aqueles versos chegaram até mim através de sua música. Eu pensava que linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer se estava feliz ou triste etc. Mas quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem podia também ser música e paixão e assim me foi revelada a poesia.

Todos nós conhecemos The red badge of courage, a história de um homem que não sabia se era covarde ou valente. Chega então o momento e ele descobre quem é. Quando escutei aqueles versos de Keats, senti de repente aquela grande experiência. Sinto-o desde então.

Quer dizer, muitas coisas aconteceram comigo, como a todos os homens. Tirei prazer de muitas coisas - de nadar, de escrever, de contemplar um crepúsculo, de estar apaixonado e assim por diante. Mas, de algum modo, o fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia.

Todos os textos e poemas digitados fazem parte do livro “Esse Ofício do Verso” de Jorge Luis Borges. Livro este, que é formado pelo conjunto de palestras proferidas pelo escritor e poeta Argentino, em 1967/68, na Universidade de Harvard, EUA.