08 março 2006

Esse Ofício do Verso

O fato central da minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia...

Jorge Luis Borges



Creio que Emerson escreveu em algum lugar que uma biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos e aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta a vida quando se abrem suas páginas.

Li certa ocasião que o pintor americano Whistler estava num café em Paris, e pessoas discutiam como a heditariedade, o ambiente, a situação política da época etc. influenciavam o artista. E Whistler então disse: “A arte acontece”. Quer dizer, existe algo misterioso sobre a arte. Gostaria de conferir a suas palavras novo sentido. Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema.

“We are stuff as dreams are made on”
[Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos]
Shakespeare


Num dos diálogos de Platão, ele fala dos livros de um modo um tanto depreciativo: “O que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto”. Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou - felizmente para nós - o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor.

Chuan Tzu, filósofo chinês, sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.

"Ode a um rouxinol de John Keats

Não nasceste para a morte, Pássaro imortal!
Nenhuma geração faminta te espezinha;
A voz que ouço nesta noite fugaz foi ouvida
Nos dias antigos por imperador e palhaço:
Talvez a mesmíssima canção que se insinuou
Pelo triste coração de Rute, quando, saudosa de casa,
Ela se desfazia em lágrimas entre o milharal alheio."


Pensava saber tudo de palavras, tudo de linguagem (de pequeno, a pessoa acha que sabe muitas coisas). Mas aquelas palavras foram uma revelação para mim. Claro, eu não as entendia. Como poderia entender aqueles versos sobre pássaros - sobre animais - que eram de algum modo eternos, intemporais, porque viviam no presente? Somos mortais porque vivemos no passado e futuro - porque lembramos um tempo em que não existíamos e antevemos um tempo em que estaremos mortos.

Aqueles versos chegaram até mim através de sua música. Eu pensava que linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer se estava feliz ou triste etc. Mas quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem podia também ser música e paixão e assim me foi revelada a poesia.

Todos nós conhecemos The red badge of courage, a história de um homem que não sabia se era covarde ou valente. Chega então o momento e ele descobre quem é. Quando escutei aqueles versos de Keats, senti de repente aquela grande experiência. Sinto-o desde então.

Quer dizer, muitas coisas aconteceram comigo, como a todos os homens. Tirei prazer de muitas coisas - de nadar, de escrever, de contemplar um crepúsculo, de estar apaixonado e assim por diante. Mas, de algum modo, o fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia.

Todos os textos e poemas digitados fazem parte do livro “Esse Ofício do Verso” de Jorge Luis Borges. Livro este, que é formado pelo conjunto de palestras proferidas pelo escritor e poeta Argentino, em 1967/68, na Universidade de Harvard, EUA.

Um comentário:

*Caroline Schneider* disse...

Vim conhecer tua segunda casa... rs
Me senti muito bem-vinda!
Beijo