11 março 2006

LEGADO, de Lya Luft



Eu quero o delírio.
Eu sou assim.
Não pretendo a integração, mas a abertura e a busca.
Encontrar pode ser impossível ou desinteressante.
Quero o pressentimento: comprimir a tela do computador e explodir o ponto e arquear o contorno varando os limites que a vida há de preencher e o sonho tornará possível.

Quero o delírio que faça as utopias virem sentar-se
na minha varanda e escrever no meu computador
quando a Razão estiver cansada,
quando a técnica parecer frívola,
ou quando eu estiver descrente.
Posso lhes dizer que somos muitos: em cada um de nós outros esperam apenas o momento de saltar fora,
tirar a máscara e revelar o que talvez nos amedronte.
E diremos: - Mas isso, isso aí, também sou eu?


Preciso admitir que a ambivalência nos salva de morrermos na poeira da mesmice. Também admito que seria mais fácil ser sempre o mesmo, seria mais doce levantar a cada manhã sem o conflito e morrer enfim sem ter jamais duvidado.
Mas não é tão simples. Desculpem mas não somos só isso.
Posso falar por mim ao menos, esta que escreve de um jeito e vive de outro, pensa de um modo mas faz diferente, tendo a marca da incoerência na testa e no coração a miragem da explicação para todos os desencontros.

Escuto o meu interior, onde personagens e narrativas aguardam que eu lhes confira a sua falsa realidade. Não falo de personagens e frases apenas, mas da consciência que procura motivo e sentido.
Estou bem acompanhada, comigo estão meus irmãos, gente da minha raça, todos os que entendem que inventar ou constatar não faz a menor diferença. Somos os doidos, os palhaços, os atores de nossa própria vida: escrevemos com sangue - nas paredes, nas páginas e nas telas dos computadores: tudo só existe na medida em que o tiramos das nossa tripas e parimos do Nosso Sonho.

Mas também sou uma mulher do meu tempo, e dele
quero dar testemunho do jeito que posso: na elaboração das minhas fantasias, mas igualmente escrevendo sobre a dor e perplexidade, sobre a doença e a morte, a palavra na hora errada e o silêncio na hora em que teria sido melhor falar - mas a gente não sabia.
E escrevo sobre sermos responsáveis e inocentes
em relação ao que acontece e ao Legado que deixamos. A ambivalência que atormenta, por outro lado levanta a poeira da resignação - e faz aparecer o nosso rosto.
E nos salva.

Este texto faz parte do livro PENSAR É TRANSGREDIR, de Lya Luft.

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