29 setembro 2013

Chuva




Hoje chove muito, muito,
e parece que estão lavando o mundo.
meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor/
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele
e parece sua sombra/
meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/
entra em casa pela janela e não pela porta/
por uma porta se entra em muitos lugares/
no trabalho, no quartel, no cárcere,
em todos os edifícios do mundo/
mas não no mundo/
nem numa mulher/ nem na alma/
quer dizer/ nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim/

como hoje/ que chove muito/
e me custa escrever a palavra amor/
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/
e somente a alma sabe onde os dois se encontram/
e quando/ e como/
mas o que pode a alma explicar?/
por isso meu vizinho tem tormentas na boca/
palavras que naufragam/
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou/
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/
como o silêncio que há entre duas rosas/
ou como eu/ que escrevo palavras para voltar
ao meu vizinho que contempla a chuva/
à chuva/
ao meu coração desterrado/

Juan Gelman

Do livro: Isso
Coleção Poetas do Mundo
Tradução: Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves

13 junho 2012

CORAÇÃO




Algumas pessoas vendem o sangue. Você vende o coração.
Era isso ou a alma.
O difícil é tirar a porcaria lá de dentro.
Uma espécie de torção, como tirar da concha uma ostra,
... sua coluna um punho,
e então, upa! ei-lo em sua boca.
Você se vira parcialmente do avesso
como uma anêmona do mar tossindo uma pedra.
Há um chape curto, o ruído alto
de entranhas de peixe caindo num balde,
e lá está ele, um imenso coágulo brilhante vermelho-escuro
do passado ainda vivo, inteiro no prato.

Passam-no ao redor. É escorregadio. Derrubam-no,
mas também o experimentam. Áspero demais, um diz. Salgado demais.
Azedo demais, diz outro, fazendo careta.
Cada um é um gourmet momentâneo,
e você fica ali ouvindo tudo isso
no canto, como um garçom recém-contratado,
a mão reservada e competente na ferida escondida
no fundo da camisa e do peito,
timidamente, sem coração.

Poema de Margaret Atwood - Tradução de Adriana Lisboa

Publicado na RISCO, Página de Poesia editada por Carlito Azevedo

30 abril 2012

Sobre as distâncias




"Alguns escrevem pela arte, pela linguagem, pela literatura.
Esses, sim, são os bons.
Eu só escrevo para fazer afagos.
E porque eu tinha de encontrar um jeito de alongar os braços.
E estreitar distâncias.
... E encontrar os pássaros..."

Rita Apoena

11 abril 2012

Sigamos o Cherne


 Fotografia: Jacques Demy - Parapluies De Cherbourg

Sigamos o cherne, minha Amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria...

Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado...

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...

Alexandre O’Neill

08 abril 2012

Haikais de Helena Kolody




Poesia mínima

Pintou estrelas no muro

e teve o céu

ao alcance das mãos.


* * *

"Deus dá a todos uma estrela.

Uns fazem da estrela um sol.

Outros nem conseguem vê-la".


* * *

Quando sonho,

sou outra.

Inauguro-me.


Helena Kolody
 

Feliz Páscoa!

06 abril 2012

Na ribeira deste rio



Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio
Nada me impede, me impele
Me dá calor ou dá frio

Vou vivendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada
Vejo os rastros que ele traz
Numa seqüência arrastada
Do que ficou para trás

Vou vendo e vou meditando
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali
E do seu curso me fio
Porque se o vi ou não vi
Ele passa e eu confio

Ele passa e eu confio

Fernando Pessoa

21 março 2012

Relógio do Rosário


Foto: Carol Timm, 1997

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.

Carlos Drummond de Andrade

16 março 2012

Correr riscos


Rir é correr o risco de parecer tolo.

Chorar é correr o risco de parecer sentimental.

Estender a mão é correr o risco de se envolver.

Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu.

Defender seus sonhos e idéias diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas

Amar é correr o risco de não ser correspondido.

Viver é correr o risco de morrer.

Confiar é correr o risco de se decepcionar.

Tentar é correr o risco de fracassar.

Mas devemos correr os riscos, porque o maior perigo é não arriscar nada.

Há pessoas que não correm nenhum risco, não fazem nada, não têm nada e não são nada.

Elas podem até evitar sofrimentos e desilusões, mas não conseguem nada, não sentem nada, não mudam, não crescem, não amam, não vivem.

Acorrentadas por suas atitudes, elas viram escravas, privam-se de sua liberdade.

Somente a pessoa que corre riscos é livre.

Seneca ( orador romano que viveu entre 55aC e 39dC )

04 março 2012

Idade do Céu



Não somos mais

Que uma gota de luz
Uma estrela que cai
Uma fagulha tão só
Na idade do céu...


Não somos o
Que queríamos ser
Somos um breve pulsar
Em um silêncio antigo
Com a idade do céu...


Calma!
Tudo está em calma
Deixe que o beijo dure
Deixe que o tempo cure
Deixe que a alma
Tenha a mesma idade
Que a idade do céu...


Não somos mais
Que um punhado de mar
Uma piada de Deus
Um capricho do sol

No jardim do céu...


Não damos pé
Entre tanto tic tac
Entre tanto Big Bang
Somos um grão de sal
No mar do céu...


Calma!
Tudo está em calma
Deixe que o beijo dure
Deixe que o tempo cure
Deixe que a alma
Tenha a mesma idade
Que a idade do céu
A mesma idade
Que a idade do céu...

A mesma idade
Que a idade do céu...


Música: Jorge Drexler
Versão: Paulinho Moska

25 fevereiro 2012

Desencanto



Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.


- Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira

01 janeiro 2012

CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE




Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...


Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...


E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...


E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.


Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.


Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!


E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Mario Quintana