31 dezembro 2011

Segue o Teu Destino



Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias


A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.


Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses


Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.


Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam


Ricardo Reis
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

28 dezembro 2011

O novo coração

Desenho: Escher


Ando ocupado!
Ando a construir
um modelo de um coração
inteiramente
novo!


Um coração
para o futuro: com o qual sinta
e ame. Um coração
com o qual compreenda os homens:


E que me diga também quem
devo livremente
cumprimentar com a minha mão -


e a quem
nunca deverei
estendê-la.


Semyon Kirsanov
(1906-1972)

Nota do Tradutor: Versão do LP, recuperada,
feita a partir da tradução inglesa de Anselm Hollo
reproduzida em City Lights Pocket Poets Anthology,
organização de Lawrence Ferlinghetti,
City Lights Books, São Francisco, 3ª edição, 1997, p. 81.


O poema acima foi capturado do imperdível blog:
DO TRAPÉZIO SEM REDE: http://arspoetica-lp.blogspot.com

23 dezembro 2011

Gostaria de descrever



Gostaria de descrever uma emoção simples
como alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
socorrendo-se de restos de chuva ou sol


Gostaria de descrever uma luz
que começa a nascer em mim
mas que sei não se assemelhar
a alguma estrela
pois não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta


Gostaria de descrever coragem
sem arrastar atrás de mim um velho leão
e também ansiedade
sem entornar um copo de água


para dizê-lo de outra maneira
desistiria de todas as metáforas
em troca de uma palavra
retirada do meu peito como uma costela
uma palavra
nascida dentro das fronteiras
da minha pele


mas aparentemente isso não é possível


e só para dizer – amo
eu ando às voltas como um louco
à procura de mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que apesar de tudo não é feita de água
pede água para a cara


e a raiva
diferente do fogo
pede-lhe emprestado
o tom eloquente


está tudo obscuro
está tudo obscuro
em mim
que homem de cabelo grisalho
irá separar de uma vez por todas
dizendo
isto é a essência
e isto é a matéria


adormecemos
com uma mão debaixo das nossas cabeças
e com a outra em inúmeros planetas


os nossos pés abandonam-nos
e entram na terra
com as suas pequenas raízes
que na manhã seguinte
arrancamos com dor


Zbigniew Herbert

«I would like to describe», em The Collected Poems:
1956-1998, Ecco: 2007.

Versão de Manuel A. Domingos

FELIZ NATAL!

20 dezembro 2011

Sonho Impossível




Sonhar


Mais um sonho impossível


Lutar


Quando é fácil ceder


Vencer


O inimigo invencível


Negar


Quando a regra é vender


Sofrer


A tortura implacável


Romper


A incabível prisão


Voar


Num limite improvável


Tocar


O inacessível chão


É minha lei, é minha questão


Virar esse mundo


Cravar esse chão


Não me importa saber


Se é terrível demais


Quantas guerras terei que vencer


Por um pouco de paz


E amanhã, se esse chão que eu beijei


For meu leito e perdão


Vou saber que valeu delirar


E morrer de paixão


E assim, seja lá como for


Vai ter fim a infinita aflição


E o mundo vai ver uma flor


Brotar do impossível chão


Versão/tradução: Chico Buarque

17 dezembro 2011

Los Hermanos ( Os Irmãos )


Hay hombres que luchan un día
y son buenos.


Hay otros que luchan un año
y son mejores.


Hay quienes luchan muchos años
y son muy buenos.


Pero hay los que luchan toda la vida:
esos son los imprescindibles.


Bertold Brecht

*

Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar.
En el valle, en la montaña, en la pampa y en el mar.
Cada cual con sus trabajos, con sus sueños.
Cada cual Con la esperanza adelante,
con los recuerdos detrás.
Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar

(...)

Athualpa Yupanqui



Há homens que lutam um dia
e são bons


Há outros que lutam um ano
e são melhores


Há aqueles que lutam muitos anos
e são muito melhores


Mas há aqueles que lutam por toda a vida
esses são os imprescindíveis

Bertold Brecht

*

Eu tenho tantos irmãos que não os posso contar
No vale, na montanha, nos pampas e no mar.
Cada qual com seus trabalhos, seus sonhos
cada qual com a esperança afrente,
com as lembranças atrás.
Eu tenho tantos irmãos que não os posso contar.

(...)

Athualpa Yupanqui


Este poema é dedicado à Candice
e a Nova Rede de Amigos a nos ajudar.

Nota: a tradução dos poemas acima é minha mesmo.

02 dezembro 2011

Parolagem da Vida



Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nula.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.
Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!


Carlos Drummond de Andrade

26 novembro 2011

Contra a decisão de partir



O meu alfaiate é contra a decisão de partir.
É por isso, disse
ele, que não se vai embora;
não quer separar-se
da sua única filha. É definitivamente
contra a ideia de partir.

Uma vez partiu - afastou-se da mulher
e depois disso
nunca mais a viu (Auschwitz).
Partiu - afastou-se
das suas três irmãs e
nunca mais tomou
conta delas (Buchenwald).
Partiu uma outra vez - e afastou-se da mãe (o pai
morreu de velho). Agora
é contra a decisão de partir.

Ele era o companheiro
mais chegado do meu pai em Berlim.
Viveram
bons tempos
nessa Berlim. O tempo passou. Agora
nunca mais se vai embora. É
o mais definitivamente possível
(o meu pai morreu entretanto)
contra a ideia de partir.


Natan Zach


Versão do LP, do imprescindível blog
http://arspoetica-lp.blogspot.com/

Nota do tradutor: Versão de LP a partir da tradução inglesa de Peter Everwine e Shulamit Yasny-Starkman reproduzida em The poetry of survival - post-war poets of central and eastern europe, organização de Daniel Weissbort, Peguin Books, 2ª edição, Londres, 1993, pp. 295-296).


21 novembro 2011

Resíduos



De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?


Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...


De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.


De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

Poema novamente colhido no blog:  ARS LONGA, VITA BREVIS

20 novembro 2011

Escreve

Fotografia: O Poema, Mario Quintana


"Já alguma vez estiveste numa guerra? Viste
corpos a cairem na poeira?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já tiveste os lábios de uma noiva a tocar
como uma flauta os teus lábios?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já alguma vez, depois de te embriagares, fechaste os olhos
e sentiste o rio vacilar e vibrar
e deslizaste sobre ele como um cisne?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já alguma vez estiveste quase a alcançar o que querias
e, de repente, tudo te fugiu,
silenciando-te o coração como um tambor?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso. Não escrevas só
sobre o que ouviste. Não escrevas
só a partir do que os outros escreveram."


Sheikh Ayaz



Poema traduzido para o português por LP, do lindo blog Do Trapézio sem Rede

(Versão do LP a partir da tradução inglesa de Asif Farrukhi e Shah Mohammed Pirzada reproduzida em Modern poetry of Pakistan, organização de Iftikhar Asif e revisão das traduções de Waqas Khwaja, Dalkey Archive Press, Champaign/Londres, 2010, pp. 116-117).

13 novembro 2011

As Amoras



O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade

Poema recortado do lindo blog: ARS LONGA, VITA BREVIS

31 outubro 2011

Para não dizer que não falei de Drummond no dia D

Foto: Andre Arment


BIBLIOTECA VERDE


Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados
em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.


Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com um arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.


Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde. Sou
o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo)
Ninguém mais aqui possui a coleção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passa a mão
no som da percalina, esse cristal
de fluida transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.


Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua... Nossa
Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!
Esparmacete cai na cama, queima
a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que pegue fogo
na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca
a paciência e te dê uma sova. Dorme,
filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.


Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?


Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei
nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente...

Carlos Drummond de Andrade

02 outubro 2011

Última carta de Van Gogh a Léo

Pintura: Van Gogh - A vida encarnada


nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar


o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada


por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

Al Berto


in A Secreta Vida das Imagens
 
Carta lida no lindo blog: http://omarpareceazeite.blogspot.com/
que por sua vez o leu AQUI

30 setembro 2011

Alguns gostam de poesia


Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola, onde é obrigatório
e os próprios poetas,
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se da galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isto
como a uma tábua de salvação.

Wislawa Szymbroska

24 setembro 2011

Carta Musical

Fotografia: Carol Timm - Vista do Corcovado, 2011


Olá, Senhor!
Escreve-te
um poeta menor,
uma voz do coro,
um pequeno pinheiro do pinhal,
um clarinete na orquestra da escola.


Achas que é assim tão
fácil, Senhor,
ser uma voz no coro,
um peixe na água,
não perturbar a Tua ordem?
Pior, porém, é o destino gelado
desses que foram feitos para serem
o primeiro violino
ou o pico mais alto da montanha.


A nós não nos custa nada afundar,
ano sim ano sim, dia após dia,
as nossas raízes no mais fundo
e praticar as nossas escalas
esperando que o maestro,
posicionado no seu lugar,
aponte a sua batuta -
então um solo sublime começa a soar
levando às lágrimas as próprias montanhas.


Marina Boroditskaya


(Versão do LP - do blog Do trapézio, sem rede -  a partir da tradução inglesa de Ruth Fainlight reproduzida em An anthology of contemporary russian women poets, selecção de Valentina Polukhina e Daniel Weissbort, University of Iowq Press, Iowa Press, 2005, pp. 19-20).


09 setembro 2011

Metamorfose


Metamorfose Ambulante


Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante


Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo


Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante


Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo


Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou


Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor


Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator


É chato chegar
A um objetivo num instante
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante


Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo


Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou


Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor


Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator


Eu vou lhe desdizer
Aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante


Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo

Raul Seixas

07 setembro 2011

This Mortal Coil, my father

Fotografia: da internet - sem autoria


Meu pai sempre me prometeu
Que viveríamos na França
Íamos de barco pelo rio Sena
E eu gostaria de aprender a dançar.

Vivíamos em Ohio, e então
Ele trabalhou nas minas
Os sonhos dele eram como barcos
Sabíamos que seria navegar no tempo.

Minhas irmãs cresceram e foram embora
Para Denver e Cheyenne
Casaram-se com seus sonhos de adulto
Os liláses e os homens.

Eu fiquei para trás, o mais novo
ainda dançava sozinho.
Esperando, esperando que os sonhos do meu pai
um dia pudessem me levar para casa.

Eu vivo em Paris agora
Minhas crianças dançam e sonham
Ouvem modos de vida de um mineiro
Em palavras que nunca dizem.

Eu navego em minhas lembranças de casa
Como barcos cruzando o Sena
E vendo os olhos do meu pai
Assistindo o pôr do sol
Que se define nos olhos de meu pai.

Canção: This Mortal Coil, my father.

No youtube: http://www.youtube.com/watch?v=ea8azaTx9VI

Novamente peguei este poema-canção no maravilhoso
blog do Leo: http://umolharsonhador.blogspot.com/

28 agosto 2011

Meditação 17

Fotografia: ©Sára Saudková

Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma;
todo homem é um pedaço do continente, uma parte
de terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo
mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido
um promontório, ou perdido, ou perdido o solar de
um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer
homem diminui a mim, porque na humanidade me
encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar
por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

©John Donne

Achei este poema no lindo blog:

Nota: A "Meditação 17" inspirou o título do romance
"Por quem os sinos dobram" de Ernest Hemingway.

25 agosto 2011

Entre as estrelas talvez você tenha razão



"Entre as estrelas talvez você tenha razão
mas não aqui", você disse e no meio da frase
caiu num choro tranquilo, como no meio de uma carta
se passa de azul a negro quando a caneta seca,
ou como o costume de trocar os cavalos durante o caminho:
a fala se cansou, o choro era refrescante.
As sementes de verão chegavam voando ao quarto
onde estávamos. Frente à janela uma amendoeira começava a enegrecer,
ela também era uma valente lutadora na eterna guerra
do doce contra o amargo.
Eu disse: olha, assim como o tempo não está nos relógios
o amor não está nos corpos,
os corpos só mostram o amor,
nós não vamos nos esquecer dessa tarde,
como não se esquece a forma de nadar
de um verão para outro. "Talvez entre as estrelas
você tenha razão, mas não aqui."


©Yehuda Amichai

08 agosto 2011

A larva

Imagem da Internet

Eu me estico para fora de minha folha de cerejeira
...
e sondo a eternidade:
a eternidade hoje está grande demais.
Acho que vou ficar aqui em minha folha de cerejeira
avaliar o tamanho de minha verde folha de cerejeira.


©Werner Aspenström

02 julho 2011

Vozes de Crianças

Pintura: ©Quint Buchholz


O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.


©Joan Margarit

27 junho 2011

A propósito de estrelas

Pintura: ©Marc Chagall


Não sei se me interessei pelo rapaz

por ele se interessar por estrelas

se me interessei por estrelas por me interessar

pelo rapaz hoje quando penso no rapaz

penso em estrelas e quando penso em estrelas

penso no rapaz como me parece

que me vou ocupar com as estrelas

até ao fim dos meus dias parece-me que

não vou deixar de me interessar pelo rapaz

até ao fim dos meus dias

nunca saberei se me interesso por estrelas

se me interesso por um rapaz que se interessa

por estrelas já não me lembro

se vi primeiro as estrelas

se vi primeiro o rapaz

se quando vi o rapaz vi as estrelas


©Adília Lopes

Encontrei esse poema no lindo blog: http://acasaquecaminha.blogspot.com/

22 junho 2011

Incompreensão

Fotografia: ©Edouard Boubat

E aqueles que foram vistos dançando foram julgados

insanos por aqueles que não podiam escutar a música.

[Nietzsche]

11 junho 2011

O VISITANTE

Imagem do filme: "O visitante"

Bem disse ele então você é o Lee. Estava de pé à porta.
Sim eu disse. Não o conhecia. Sou o Lee.
Queria conhecer você disse ele. A Jackie foi quem me falou de você.
Ah eu disse. Entre.
Ele entrou e sentou-se na cama.
A garota lá de Rockland eu disse. Como ela está?
Bem disse ele. Sorriu. Está mesmo muito bem. Ela gosta daquilo lá disse ele.
Que bom eu disse. Ele me metia medo. Ouça eu disse sobre o que é que queria me falar?
Foi lá que eu conheci a Jackie disse ele. Em Rockland. Terapia ocupacional. Fizemos umas coisas.
Ah eu disse.
Você escreve poesia disse ele. Olhou para mim.
Sim eu disse.
A Jackie me mostrou algum poema seu disse ele. Acho que você lhe mandou um junto com uma carta.
Foi? eu disse. Não me lembrava.
Ele disse sim você mandou. Depois ele disse porque é que você escreve poesia?
Eu não disse nada. Tinha deixado de pensar nisso há muito tempo.
Eu costumava escrever poesia disse ele.
É? eu disse.
É disse ele. Costumava escrever dia e noite.
E porque parou? Eu disse. Não sabia mais o que dizer.
Queimei tudo disse ele. Antes de ir para Rockland.
Ah eu disse.
A Jackie me passou o seu endereço ele disse. Estava no envelope.
Depois ele disse não consigo entender porque é que alguém faz seja lá o que for.
Eu disse porra cara alguma coisa é preciso ser feita. Disse isso bem alto.
Ficou ali sentado um pouco. Estava escurecendo. Acendi todas as luzes da casa.
Depois eu comecei outra vez disse ele.
É? eu disse.
É disse ele. Às vezes tem que ser. Não posso evitar. Depois ele disse até agora ainda não queimei nada.
Muito bem eu disse. Pensei que ainda estava falando de poesia. Gostaria de ler alguma coisa.
Talvez eu pare quando arranjar um emprego disse ele. Você acha
que sim?
Não disse nada.
Espero que sim disse ele é tão estúpido escrever.
Gostaria realmente de ver os seus poemas eu disse.
É muito amável da sua parte disse ele. Eu gostei muito da sua poesia. Jackie me mostrou.
Levantou-se e vestiu o casaco. Ontem escrevi bastante disse ele. Quatorze horas seguidas.
Foi até à porta. Penso que vou parar logo logo disse ele ou então vou queimar tudo de novo. E meio que riu.
Abri-lhe a porta.
Talvez eu queime tudo outra vez disse ele.
Traga-me alguma coisa qualquer dia eu disse. Gostaria de ler.
Ele estava no patamar mas parou e olhou para mim.
Gostaria realmente de ler alguma coisa sua eu disse.
Sim disse ele.


©Diane Di Prima


08 maio 2011

Antigamente...

Ilustração: ©Amanda Cass


Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
"Canta alto, espevita as palavras bem."
Eu levantava vôo rua acima


©Adélia Prado

29 abril 2011

O Elefante

Ilustração: ©Bobi - http://www.bobibook.blogspot.com/


Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.


Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.


Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.


Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.


E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

©Carlos Drummond de Andrade

28 abril 2011

Lançamento EmCimaDoChão/Istorismos - Luca Argel & Victor Mattos

Capa do Livro!


Nesta QUINTA, dia 28/04/2011, às 19:00 horas - HOJE!!

Lançamento EmCimaDoChão/Istorismos - Luca Argel & Victor Mattos

Na MULTIFOCO LAPA.
Av. Mem de Sá, 126

Estão todos convidados!!

23 abril 2011

14 abril 2011

A minha casa

Ilustração: Autoria Desconhecida



Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

©Eugénio de Andrade

28 março 2011

Falésias

Fotografia: ©Alex Uchôa

Hoje tivemos
um dia limpo
caminhamos e comemos
em silêncio

buscamos o ponto mais alto
da cidade e falamos
sobre uma casa
que não será construída

falamos sobre essa casa
implantada nas falésias
aberta
aos gritos do mar

falamos
dessa casa
cada vez mais improvável
onde nenhum de nós vai morar

voltamos em silêncio
eu pensando em certos bichos
que só se acasalam
com difculdade

©Ana Martins Marques

Em "A Vida Submarina"

Publicado na página Risco, caderno "Prosa e Verso",
O Globo, 27 de março de 2011.