31 dezembro 2010

Se eu pudesse deixar algum PRESENTE a você...


Ilustração: ©Kathleen Kemly

Se eu pudesse deixar algum presente a você,
deixaria aceso o sentimento
de amar a vida dos seres humanos.


A consciência de aprender tudo
o que foi ensinado pelo tempo afora.

Lembraria os erros que foram cometidos
para que não mais se repetissem.

A capacidade de escolher novos rumos.

Deixaria para você se pudesse,
o respeito àquilo que é indispensável:

Além do pão, o trabalho.

Além do trabalho, a ação.

E, quando tudo mais faltasse, um segredo:

O de buscar no interior de si mesmo a resposta
e a força para encontrar a saída.

©Mahatma Gandhi


FELIZ 2011 PARA TODOS!!


24 dezembro 2010

Poema de Natal

Ilustração: ©Elivia Savadier

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

©Vinicius de Moraes

05 dezembro 2010

ALMA de Nydia Bonetti

Foto: ©Carol Timm


alma
o poeta
tem métrica na pele
na língua, nas mãos
tem mente ritmada
simétrica visão
tem métricos ouvidos
compassado coração
mas sua alma é pura
[... vertigem


©Nydia Bonetti

Do lindo blog: LONGITUDES

O domingo pede música: PAIS e FILHOS



PAIS & FILHOS


Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe
O que aconteceu...


Ela se jogou da janela
Do quinto andar
Nada é fácil de entender...


Dorme agora
Uuummhum!
É só o vento
Lá fora...


Quero colo!
Vou fugir de casa!
Posso dormir aqui com vocês
Estou com medo, tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três...


Meu filho vai ter
Nome de santo
Uummhum!
Quero o nome mais bonito...


É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar
Pra pensar
Na verdade não há...


Me diz, por que que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos
Que tomam conta de mim...


Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua
Não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar...


Já morei em tanta casa
Que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais
Huhuhuhu!...ouh! ouh!...


É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar
Pra pensar
Na verdade não há...


Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais
Não entendem
Mas você não entende seus pais...


Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?


Legião Urbana
Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá

23 novembro 2010

Velha História


Um dia, ao pescar na beira de um rio, um homem pega um peixe.
A partir de um gesto de afeto do pescador,
os dois desenvolvem uma linda amizade
que é admirada por todos na cidade.

Do poema de Mario Quintana.




Este e outros Curta-Metragens
são encontrados no site: PORTA CURTAS

14 novembro 2010

Milagreiro



Agora vamos ter os girassóis
Do fim do ano
E o calor vem desumano
Tudo irá se expandir
Crescer com as águas
Quiçá, amores nos corações
E um santeiro,
Milagreiro
Prevê a dor
De terceiros
E diz que a vida
É feita de ilusão
E um santeiro,
Milagreiro
Prevê a dor
De terceiros
E diz que a vida
É feita de ilusão
Aquela que um dia o fez sonhar
Se foi com o outro
No dia em que os dois
Se casariam por amor
Ele aluou
Hoje o seu pesar
Cintila nos varais
Usou as sete vidas
E não foi feliz jamais
Toda a imensidão
Passou pela vida
E foi cair na solidão
Mais um santo para esculpir é o que lhe vale
Pra evitar que o rancor suas ervas espalhe



Composição: Djavan
Intépretes: Cássia Eller e Djavan

12 novembro 2010

FELICIDADE


Fotografia: ©Cidinha Madeiro
 
 
É tão cedo que quase não há luz do lado de fora.
Estou de pé junto à janela.
Tenho na mão uma xícara de café,
e na cabeça aquilo que por essas horas
costumamos confundir com pensamentos.
 
Então vejo o garoto com seu amigo
chegando pela rua
para entregar o jornal.
 
Estão com gorros e pulôveres,
e um deles transporta uma mochila no ombro.
Parecem tão felizes
que nem abrem a boca, estes dois meninos.
 
Creio que, se pudessem,
andariam de mãos dadas.
É tão cedo de manhã, e eles
estão fazendo juntos o trabalho.
 
Aproximam-se lentamente.
O céu só agora começa a se iluminar,
embora a lua ainda se incline sobre a água.
 
É tanta beleza que, por um minuto,
a ambição ou a morte, e mesmo o próprio amor,
nada têm a ver com tudo isto.
 
Felicidade vem sem que a chamem
e transcende qualquer argumentação
matutina a respeito.
 
©Raymond Carver

12 outubro 2010

Quando a criança era criança

Fotografia de Viagem: ©Carol Timm - 1997

Quando a criança era criança
Ela caminhava com os braços balançando
Ela queria que a ribeira fosse um rio,
O rio uma torrente
E uma poça d´água, o mar,


Quando a criança era criança,
Ela não sabia que era criança.
Tudo era inspirado nela,
E todas as almas eram uma só.
Quando a criança era criança,
Não tinha opinião sobre nada,
Não tinha nenhum hábito
Sentava-se de pernas cruzadas,
E saía a correr de repente.
Tinha um redemoinho no cabelo
E não fazia caretas quando ia tirar fotografias.


Quando a criança era criança,
Era a época das perguntas:
Por que eu sou Eu
E não tu?
Por que eu estou aqui e
Por que não lá?
Quando começou o tempo
E onde termina o espaço?
A vida sob o sol não é apenas um sonho?
Não seria tudo o que eu posso ver, ouvir e cheirar
Apenas a aparência de um mundo anterior a este mundo?
Existe mesmo o Mal
E pessoas que são realmente más?
Como é que eu, o Eu que eu sou,
Antes que eu viesse a ser, não era?
E como é que um dia eu,
O Eu que eu sou, não mais serei
O eu que Eu sou?


De Handke-Wenders
Poema inspirado nos versos de Rainer Maria Rilke


Do filme Asas do Desejo de Win Wenders

26 setembro 2010

Não quero dinheiro



Vou pedir prá você ficar
Vou pedir prá você voltar
Eu te amo
Eu te quero bem


Vou pedir prá você me amar
Vou pedir prá você gostar
Eu te amo
Eu te adoro, meu amor

A semana inteira
Fiquei esperando
Prá te ver sorrindo
Prá te ver cantando
Quando a gente ama
Não pensa em dinheiro
Só se quer amar
Se quer amar
Se quer amar


De jeito maneira
Não quero dinheiro
Quero amor sincero
Isto é que eu espero
Grito ao mundo inteiro
Não quero dinheiro
Eu só quero amar


Te espero para ver se você vem
Não te troco nesta vida por ninguém
Porque eu te amo
Eu te quero bem


Acontece que na vida gente tem
Que ser feliz por ser amado por alguém
Porque eu te amo
Eu te adoro, meu amor


A semana inteira
Fiquei esperando
Prá te ver sorrindo
Prá te ver cantando
Quando a gente ama
Não pensa em dinheiro
Só se quer amar
Se quer amar
Se quer amar


De jeito maneira
Não quero dinheiro
Quero amor sincero
Isto é que eu espero
Grito ao mundo inteiro
Não quero dinheiro
Eu só quero amar


Vou pedir prá você gostar
Vou pedir prá você me amar
Eu te amo
Eu te adoro, meu amor


A semana inteira
Fiquei esperando
Prá te ver sorrindo
Prá te ver cantando
Quando a gente ama
Não pensa em dinheiro
Só se quer amar
Se quer amar
Se quer amar


De jeito maneira
Não quero dinheiro
Quero amor sincero
Isto é que eu espero
Grito ao mundo inteiro
Não quero dinheiro
Eu só quero amar


©Tim Maia



CANTAR em Coro o TIM é tudo de bom!!

21 setembro 2010

Certeza



Sereno, o parque espera
Mostra os braços cortados,
E sonha a Primavera
Com seus olhos gelados.


É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente;
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e sementes.


Basta que um novo Sol
Desça do velho céu,
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.


©Miguel Torga


Dia da Árvore!

13 setembro 2010

Livro do Desejo

Ilustração: ©Amanda Cass

Não consigo superar as colinas
O sistema foi abaixo
Vivo de comprimidos
Coisa que agradeço a D--s


Segui o trajecto
Do caos à arte
Desejo o cavalo
Depressão a carruagem


Naveguei como um cisne
Afundei-me como uma rocha
Mas o tempo passou há muito
Pelas minhas reservas de riso


A minha página era demasiado
branca
A minha tinta era demasiado fina
O dia não quis escrever
Aquilo que a noite rabiscara


O meu animal uiva
O meu anjo aborreceu-se
Mas não me é permitida
Uma réstia de remorso


Pois alguém há-de utilizar
Aquilo que eu não soube ser
O meu coração será dela
De uma forma impessoal


Ela pisará o caminho
Perceberá a minha intenção
A minha vontade partida em duas
E a liberdade pelo meio


Por menos de um segundo
As nossas vidas colidirão
O interminável suspenso
A porta de par em par


Então ela há-de nascer
Para alguém como tu
O que nunca ninguém fez
Ela continuará a fazer


Sei que ela vem aí
Sei que ela irá olhar
E esse é o desejo
E este é o livro


©Leonard Cohen
Livro do Desejo
(edições quasi)
tradução de Vasco Gato

08 setembro 2010

Ponte dos Arcos

Fotografia: ©Manuel Oliveira


Devo ser o mesmo homem
aquele que carrega dentro de si
o que restou dos amigos
que já partiram
devo ser um passageiro em Granada
na tarde em que todos os poetas desapareceram
da face do mundo
devo ser o que se perde
mas não naufraga
num mar de avenidas
devo ser aquele que escapa
de si mesmo
e que nunca mais volta para casa
devo ser alguém
que não lembra da última noite
e dos cantores sob a luz do poste
calados
devo ser um deles
com um cigarro apagado
sentado nas pedras
olhando o mar do Caribe
devo ser o velho do barco
aquele que sempre voltou
devo ser ele
aquele mesmo menino
que monta um proto selvagem
e aposta corrida com o vento
e atravessa os dias
levitando
sobre a ponte dos arcos
e brinca de guerrilheiro
na outra margem do rio

©Lalo Arias
Em Cidade Desaparecida

Outros poemas no blog do autor:  AQUI

01 setembro 2010

Introdução à Vida Selvagem



a lanchonete fortemente iluminada
brilhando contra as pistas do aeroporto
onde você chega, malas na mão
sem conhecer ninguém.
o plástico vermelho das paredes
berrando sentenças antigas
te apontando essa noite.
uma noite como outra qualquer
de uma noite que dorme
exceto que você chegou, com um pouco de frio
caminhando entre os bancos vazios, fechando
o casaco
arrastando suas malas até um táxi cansado
que o levará através de tantas avenidas
tantas avenidas
só pra te deixar sozinho com um porteiro envelhecido de sono
que levará suas malas para o quarto
nem que tenha que mover céus e terras para isso.


não, nunca haverá uma noite como essa
em que você olha com olhos modernos para todas as coisas
e elas te olham sem revolta, esperando.
não faz muito o avião sobrevoava essa terra de bravos
a cabine cheirando a cigarro, as luzes de plástico
esse livro sempre em suas mãos
e o outro, o que você não escreveu.
não fosse tarde e ainda falaríamos de outras coisas
da cidade da qual você é dono,
do mar que cruzamos ainda há pouco, pensando em palavras
do nome que te levou através de tantas aventuras
tantas aventuras
só pra te deixar cansado numa lanchonete estranha
onde você se senta sem pressa, adiando a hora do amor.


©Roberto Motta

Introdução à Vida Selvagem
Coleção Ladrões de Fogo
Editora Outras Letras


28 agosto 2010

Hotel Marriot, Madrugada


Chove sobre teus olhos e nos vidros
como se fosse uma bússula da noite,
acende-se brilhante a agulha da Chrysler
em cima do arranha-céus mais belo do mundo.
A chuva vai adormecendo com o teu nome
e limpa o poço negro da melancolia.
As sirenes de urgência atravessam
túneis de alarme nas ruas desertas.
São as vozes ensurdecedoras do passado
que dizem que me detenha e volte para casa.
Nada no norte gélido da agulha.

©Joan Margarit

22 agosto 2010

Preciosidade

Fotografia: ©Carol Timm


Um dia desses, pertinho daqui, enviei um e-mail para uma pessoa querida com a intenção de parabenizá-la pelo seu aniversário. Escrevi na mensagem que, talvez um pouco mais do que nos outros dias, eu celebrava a oportunidade preciosa do seu nascimento e que também para a minha vida a vida dela fazia uma diferença linda no mundo. Escrevi sem esquecer que a vida, a nossa e a alheia, pode ser comemorada a todo instante, não importa a data que o calendário diga, nem a hora que os ponteiros marquem. Não só pode como deve. O que acontece é que muitas vezes no aniversário a gente costuma criar um espaço maior na correria para festejar o que, de verdade, merece ser festejado diariamente no coração.


Tem gente que entra na nossa vida de forma providencial e se encaixa naquela história que gosto de imaginar: surpresas que Deus embrulha pra presente e nos envia no anonimato. Surpresas que só sabemos de onde vêm porque chegam com o cheiro dele no papel. Acho maravilhoso perceber o quanto algumas vidas interagem com a nossa de um jeito tão mágico e bonito. Os milagres existem para quem tem olhos que sabem ver a sabedoria e a ludicidade amorosa próprias do que é divino. Do que transcende. Do que escapole da nossa lógica tantas vezes sem coração. Todo encontro que verdadeiramente nos toca é uma espécie de milagre num mundo de bilhões de seres humanos. Algumas pessoas a gente nem imaginava que existiam, mas, meu Deus, que agrado bom é para a alma descobrir que vivem. Que estão por aqui conosco. Pessoas que fazem muita diferença na nossa jornada, com as quais trocamos figurinhas raras para o nosso álbum.


Nós também fazemos diferença para muita gente. Não estamos isolados nos nossos corpos como muitas vezes sentimos ou, por medo, talvez preferíssemos. Nossos gestos afetam outras tantas pessoas, conhecidas ou não. Fazemos parte de uma rede tecida por fios sutis de interdependência. Agora, neste instante, existem vidas sendo tocadas, de formas até inimagináveis, pela sua, pela minha. Toda vida é muita vida: ela e tudo o que abraça com os seus longos braços de energia. Se fazemos diferença, que seja com amor. É ele, sempre ele, que faz a diferença mais linda.

©Ana Jácomo
Texto do lindo blog: Cheiro de Flor quando Ri


Dedido este post à querida amiga Adelaide que faz aniversário HOJE!!

17 agosto 2010

A complicada arte de ver



por Rubem Alves


Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."


Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".


Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.


William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.


Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.


Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".


A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.


Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".


Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...



O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.

14 agosto 2010

O Pássaro Azul



Há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
Há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo ?
(…) Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
Eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
Depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?


©Charles Bukowski

10 agosto 2010

Paciência




Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para...


Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...


Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência...


O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...


Será que é tempo
Que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo
Para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara...


Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não...


Será que é tempo
Que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo
Para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara...


Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida é tão rara
A vida é tão rara...


A vida é tão rara...

©Lenine

02 agosto 2010

Soneto Antigo

Ilustração: ©Johanna Wright


Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.


Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.


O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.


Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.


©Cecília Meireles

18 julho 2010

Ars Poetica



Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse nem poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.


Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.


É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito,
embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil de entender a soberba dos poetas,
por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta.


Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?


Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.


Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente das clínicas psiquiátricas.


Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios somos diferentes dos nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter o respeito de parentes e vizinhos.


A vantagem da poesia consiste no facto de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.


Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu instrumento.


©Czeslaw Milosz
(traduzido por Aleksandar Jdanovic)

15 julho 2010

Enquanto Isso...



Enquanto isso
anoitece em certas regiões
E se pudéssemos
ter a velocidade para ver tudo
assistiríamos tudo
A madrugada perto
da noite escurecendo
ao lado do entardecer
a tarde inteira
logo após o almoço
O meio-dia acontecendo em pleno sol
seguido da manhã que correu
desde muito cedo
e que só viram
os que levantaram para trabalhar
no alvorecer que foi surgindo


Meanwhile
Meanwhile night falls
into regions
and if we could just see faster
we could watch everything
Dawn is niext to night
and getting darker
and all the afternoons
are falling, falling
and then just after lunch
Noon rose into full sunlight
And then another morning
running early
seen only by those who rose
in time to work.

10 julho 2010

Canção da Ilha

Fotografia: ©Carol Timm


Quando alguém parte, tem de lançar
ao mar o chapéu com as conchas


apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,


tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,


tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou no copo,


tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,


tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!


Depois, regressará,
Quando?
Não perguntes.


©Ingeborg Bachmann


02 julho 2010

NÃO MAIS

Fotografia: ©Carol Timm

Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.


Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.

©Czeslaw Milosz
Montgeron, 1957

30 junho 2010

TABACARIA

Fotografia: ©Henri Cartir-Bresson

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


©Álvaro de Campos, 15-1-1928
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

26 junho 2010

Homem com Mochila

Pintura: ©Iman Maleki

Homem com mochila no mercado, Irmão
como você, sou homem burro, homem camelo,
homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
são escravos de escravos, sujeitos e humilhados.
Nós trocamos moedas por verduras frescas,
e para o esquecimento de nossas vidas compramos
frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
memória de cheiro da terra e do zumbir das abelhas em dia de calor.
Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão,
antes de um amor longo e intenso,
que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
carregamos o fruto da árvore do conhecimento.
Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E como à noite nós dormimos,
em que sonhamos? Os que você ama,
ainda vivem nos mesmos lugares?
Nossas mochilas, como pára-quedas fechados
em, nossas costas, abrem de noite
pra podemos saltar, e pairar
sobre a fragrância de lembrar e esquecer.


©Yehuda Amichai
(tradução de Millor Fernandes)