10 junho 2010

Tatiana Belinky e Vera Mantero

Uma entrevista com a escritora Tatiana Belinky




Um depoimento da bailarina Vera Mantero

O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação. Precisa de se ocupar constantemente. O espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. Se dissermos a coisa assim, a palavra ‘entretenimento’ torna-se muito menos pecaminosa. Enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta.

Necessitamos das artes para não morrermos. As artes falam connosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. Não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio...

Vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. Talvez não só de possibilidade como de interesse. Um ponto em que é possível e interessante existir...

O ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais subtil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam.

É preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. É preciso olear o espírito, olear o ser. É preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. É preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objectos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, na relação com os outros.

Nós precisamos muito disto

Precisamos muito disto tudo

E estamos a ter muito pouco disto

E é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão

A cultura está em erosão

E nós às vezes estamos muito tristes

Ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.

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