31 dezembro 2011

Segue o Teu Destino



Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias


A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.


Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses


Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.


Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam


Ricardo Reis
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

28 dezembro 2011

O novo coração

Desenho: Escher


Ando ocupado!
Ando a construir
um modelo de um coração
inteiramente
novo!


Um coração
para o futuro: com o qual sinta
e ame. Um coração
com o qual compreenda os homens:


E que me diga também quem
devo livremente
cumprimentar com a minha mão -


e a quem
nunca deverei
estendê-la.


Semyon Kirsanov
(1906-1972)

Nota do Tradutor: Versão do LP, recuperada,
feita a partir da tradução inglesa de Anselm Hollo
reproduzida em City Lights Pocket Poets Anthology,
organização de Lawrence Ferlinghetti,
City Lights Books, São Francisco, 3ª edição, 1997, p. 81.


O poema acima foi capturado do imperdível blog:
DO TRAPÉZIO SEM REDE: http://arspoetica-lp.blogspot.com

23 dezembro 2011

Gostaria de descrever



Gostaria de descrever uma emoção simples
como alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
socorrendo-se de restos de chuva ou sol


Gostaria de descrever uma luz
que começa a nascer em mim
mas que sei não se assemelhar
a alguma estrela
pois não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta


Gostaria de descrever coragem
sem arrastar atrás de mim um velho leão
e também ansiedade
sem entornar um copo de água


para dizê-lo de outra maneira
desistiria de todas as metáforas
em troca de uma palavra
retirada do meu peito como uma costela
uma palavra
nascida dentro das fronteiras
da minha pele


mas aparentemente isso não é possível


e só para dizer – amo
eu ando às voltas como um louco
à procura de mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que apesar de tudo não é feita de água
pede água para a cara


e a raiva
diferente do fogo
pede-lhe emprestado
o tom eloquente


está tudo obscuro
está tudo obscuro
em mim
que homem de cabelo grisalho
irá separar de uma vez por todas
dizendo
isto é a essência
e isto é a matéria


adormecemos
com uma mão debaixo das nossas cabeças
e com a outra em inúmeros planetas


os nossos pés abandonam-nos
e entram na terra
com as suas pequenas raízes
que na manhã seguinte
arrancamos com dor


Zbigniew Herbert

«I would like to describe», em The Collected Poems:
1956-1998, Ecco: 2007.

Versão de Manuel A. Domingos

FELIZ NATAL!

20 dezembro 2011

Sonho Impossível




Sonhar


Mais um sonho impossível


Lutar


Quando é fácil ceder


Vencer


O inimigo invencível


Negar


Quando a regra é vender


Sofrer


A tortura implacável


Romper


A incabível prisão


Voar


Num limite improvável


Tocar


O inacessível chão


É minha lei, é minha questão


Virar esse mundo


Cravar esse chão


Não me importa saber


Se é terrível demais


Quantas guerras terei que vencer


Por um pouco de paz


E amanhã, se esse chão que eu beijei


For meu leito e perdão


Vou saber que valeu delirar


E morrer de paixão


E assim, seja lá como for


Vai ter fim a infinita aflição


E o mundo vai ver uma flor


Brotar do impossível chão


Versão/tradução: Chico Buarque

17 dezembro 2011

Los Hermanos ( Os Irmãos )


Hay hombres que luchan un día
y son buenos.


Hay otros que luchan un año
y son mejores.


Hay quienes luchan muchos años
y son muy buenos.


Pero hay los que luchan toda la vida:
esos son los imprescindibles.


Bertold Brecht

*

Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar.
En el valle, en la montaña, en la pampa y en el mar.
Cada cual con sus trabajos, con sus sueños.
Cada cual Con la esperanza adelante,
con los recuerdos detrás.
Yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar

(...)

Athualpa Yupanqui



Há homens que lutam um dia
e são bons


Há outros que lutam um ano
e são melhores


Há aqueles que lutam muitos anos
e são muito melhores


Mas há aqueles que lutam por toda a vida
esses são os imprescindíveis

Bertold Brecht

*

Eu tenho tantos irmãos que não os posso contar
No vale, na montanha, nos pampas e no mar.
Cada qual com seus trabalhos, seus sonhos
cada qual com a esperança afrente,
com as lembranças atrás.
Eu tenho tantos irmãos que não os posso contar.

(...)

Athualpa Yupanqui


Este poema é dedicado à Candice
e a Nova Rede de Amigos a nos ajudar.

Nota: a tradução dos poemas acima é minha mesmo.

02 dezembro 2011

Parolagem da Vida



Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nula.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.
Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!


Carlos Drummond de Andrade