26 novembro 2011

Contra a decisão de partir



O meu alfaiate é contra a decisão de partir.
É por isso, disse
ele, que não se vai embora;
não quer separar-se
da sua única filha. É definitivamente
contra a ideia de partir.

Uma vez partiu - afastou-se da mulher
e depois disso
nunca mais a viu (Auschwitz).
Partiu - afastou-se
das suas três irmãs e
nunca mais tomou
conta delas (Buchenwald).
Partiu uma outra vez - e afastou-se da mãe (o pai
morreu de velho). Agora
é contra a decisão de partir.

Ele era o companheiro
mais chegado do meu pai em Berlim.
Viveram
bons tempos
nessa Berlim. O tempo passou. Agora
nunca mais se vai embora. É
o mais definitivamente possível
(o meu pai morreu entretanto)
contra a ideia de partir.


Natan Zach


Versão do LP, do imprescindível blog
http://arspoetica-lp.blogspot.com/

Nota do tradutor: Versão de LP a partir da tradução inglesa de Peter Everwine e Shulamit Yasny-Starkman reproduzida em The poetry of survival - post-war poets of central and eastern europe, organização de Daniel Weissbort, Peguin Books, 2ª edição, Londres, 1993, pp. 295-296).


21 novembro 2011

Resíduos



De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?


Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...


De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.


De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

Poema novamente colhido no blog:  ARS LONGA, VITA BREVIS

20 novembro 2011

Escreve

Fotografia: O Poema, Mario Quintana


"Já alguma vez estiveste numa guerra? Viste
corpos a cairem na poeira?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já tiveste os lábios de uma noiva a tocar
como uma flauta os teus lábios?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já alguma vez, depois de te embriagares, fechaste os olhos
e sentiste o rio vacilar e vibrar
e deslizaste sobre ele como um cisne?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso."


"Já alguma vez estiveste quase a alcançar o que querias
e, de repente, tudo te fugiu,
silenciando-te o coração como um tambor?"


"Sim."


"Então escreve sobre isso. Não escrevas só
sobre o que ouviste. Não escrevas
só a partir do que os outros escreveram."


Sheikh Ayaz



Poema traduzido para o português por LP, do lindo blog Do Trapézio sem Rede

(Versão do LP a partir da tradução inglesa de Asif Farrukhi e Shah Mohammed Pirzada reproduzida em Modern poetry of Pakistan, organização de Iftikhar Asif e revisão das traduções de Waqas Khwaja, Dalkey Archive Press, Champaign/Londres, 2010, pp. 116-117).

13 novembro 2011

As Amoras



O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade

Poema recortado do lindo blog: ARS LONGA, VITA BREVIS