18 julho 2010

Ars Poetica



Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse nem poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.


Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.


É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito,
embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil de entender a soberba dos poetas,
por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta.


Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?


Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.


Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente das clínicas psiquiátricas.


Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios somos diferentes dos nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter o respeito de parentes e vizinhos.


A vantagem da poesia consiste no facto de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.


Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu instrumento.


©Czeslaw Milosz
(traduzido por Aleksandar Jdanovic)

15 julho 2010

Enquanto Isso...



Enquanto isso
anoitece em certas regiões
E se pudéssemos
ter a velocidade para ver tudo
assistiríamos tudo
A madrugada perto
da noite escurecendo
ao lado do entardecer
a tarde inteira
logo após o almoço
O meio-dia acontecendo em pleno sol
seguido da manhã que correu
desde muito cedo
e que só viram
os que levantaram para trabalhar
no alvorecer que foi surgindo


Meanwhile
Meanwhile night falls
into regions
and if we could just see faster
we could watch everything
Dawn is niext to night
and getting darker
and all the afternoons
are falling, falling
and then just after lunch
Noon rose into full sunlight
And then another morning
running early
seen only by those who rose
in time to work.

10 julho 2010

Canção da Ilha

Fotografia: ©Carol Timm


Quando alguém parte, tem de lançar
ao mar o chapéu com as conchas


apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,


tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,


tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou no copo,


tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,


tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!


Depois, regressará,
Quando?
Não perguntes.


©Ingeborg Bachmann


02 julho 2010

NÃO MAIS

Fotografia: ©Carol Timm

Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.


Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.

©Czeslaw Milosz
Montgeron, 1957