30 junho 2010

TABACARIA

Fotografia: ©Henri Cartir-Bresson

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


©Álvaro de Campos, 15-1-1928
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

26 junho 2010

Homem com Mochila

Pintura: ©Iman Maleki

Homem com mochila no mercado, Irmão
como você, sou homem burro, homem camelo,
homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
são escravos de escravos, sujeitos e humilhados.
Nós trocamos moedas por verduras frescas,
e para o esquecimento de nossas vidas compramos
frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
memória de cheiro da terra e do zumbir das abelhas em dia de calor.
Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão,
antes de um amor longo e intenso,
que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
carregamos o fruto da árvore do conhecimento.
Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E como à noite nós dormimos,
em que sonhamos? Os que você ama,
ainda vivem nos mesmos lugares?
Nossas mochilas, como pára-quedas fechados
em, nossas costas, abrem de noite
pra podemos saltar, e pairar
sobre a fragrância de lembrar e esquecer.


©Yehuda Amichai
(tradução de Millor Fernandes)

21 junho 2010

NA ESTRADA PARA CASA

Fotografia: ©Carlos Resende

Foi quando eu disse:
“Não há tal coisa como a verdade”,
Que as uvas pareceram mais gordas.
A raposa saltou de sua toca.

Você... Você disse:
“Há muitas verdades,
Mas não são partes de uma verdade.”
Então a árvore, à noite, começou a mudar,

Nuançando-se entre verdes e azuis.
Éramos duas figuras numa mata.
Dissemos que estávamos sós.

Foi quando eu disse:
“Palavras não são formas de uma palavra única.
Na soma das partes, há apenas as partes.
O mundo deve ser medido a olho”;

Foi quando você disse:
“Os ídolos viram muita pobreza,
Cobras e ouro e piolhos,
Mas não a verdade”;

Foi nessa hora que o silêncio ficou mais amplo
E mais longo, e a noite mais redonda,
A fragrância do outono mais cálida,
Mais íntima e mais forte.

©Wallace Stevens

13 junho 2010

Traduzir-se

Fotografia: ©Rodrigo Bela Vista (www.olhares.com)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

©Ferreira Gullar

10 junho 2010

Tatiana Belinky e Vera Mantero

Uma entrevista com a escritora Tatiana Belinky




Um depoimento da bailarina Vera Mantero

O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação. Precisa de se ocupar constantemente. O espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. Se dissermos a coisa assim, a palavra ‘entretenimento’ torna-se muito menos pecaminosa. Enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta.

Necessitamos das artes para não morrermos. As artes falam connosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. Não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio...

Vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. Talvez não só de possibilidade como de interesse. Um ponto em que é possível e interessante existir...

O ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais subtil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam.

É preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. É preciso olear o espírito, olear o ser. É preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. É preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objectos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, na relação com os outros.

Nós precisamos muito disto

Precisamos muito disto tudo

E estamos a ter muito pouco disto

E é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão

A cultura está em erosão

E nós às vezes estamos muito tristes

Ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.

06 junho 2010

DUETOS



Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz

Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz

Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca

CHICO BUARQUE & NARA LEÃO

02 junho 2010

Um pouco da Alma

Fotografia de Henri Cartier-Bresson: ©Martine Frank

A alma vai-se tendo.
Ninguém a tem o tempo todo
nem para sempre.

Dia após dia,
ano após ano,
pode passar-se sem ela.

Às vezes
é nos arroubos e medos da infância
que se instala em nós por mais tempo.
Outras vezes, é no espanto
perante a nossa velhice.

Raramente nos assiste
nas tarefas chatas,
como mudar de posição uns móveis,
carregar malas
ou cruzar uma estrada com as botas apertadas

Enquanto se preenche um questionário,
ou se corta a carne,
em regra geral, ela está de folga.

Em cada mil conversas que temos
participa em uma,
e não necessariamente,
pois prefere o silêncio.

Quando o corpo nos começa a doer e a doer,
ela abandona furtivamente o seu posto.

É caprichosa:
com desagrado nos vê na multidão,
repugna-lhe a nossa luta por uma tal prevalência
e o matraquear dos negócios.

Alegria e tristeza
não são para ela sentimentos distintos.
Apenas na ligação dos dois
ela está ao nosso lado.

Dos objetos materiais,
gosta dos relógios de pêndulo
e dos espelhos que trabalham assiduamente,
mesmo sem ninguém olhar.

Não diz de onde vem
nem quando tornará a deixar-nos,
mas espera evidentemente por tais perguntas.

Parece que tal como ela a nós,
também nós
lhe servimos para alguma coisa.

©Wislawa Szymborska
Do livro INSTANTE