31 março 2006

Martha Medeiros



Só é mal educado quem quer

Uma pessoa faz uma gentileza pra você: manda um pão feito em casa pra você provar, ou empresta um livro raríssimo, ou indica um médico sensacional. Tempos atrás, você tinha duas maneiras de agradecer: telefonava ou enviava um telegrama, cartão, carta. Telefonar significa ter que dedicar um tempo pra conversa, e ainda arriscar invadir a privacidade de alguém numa hora imprópria. E telegrama? Pra alguns, é uma mão de obra ligar para os Correios, descobrir o endereço do destinatário, etc. Hoje existe um método muito mais fácil, rápido e indolor de ser cordial: o e-mail. Quem tem acesso à Internet em casa ou no trabalho não tem desculpa para ser grosso. Nunca foi tão fácil cumprimentar por um aniversário, desejar que alguém se saia bem numa prova, agradecer um jantar, justificar uma ausência, elogiar uma promoção, desculpar-se por uma gafe. Em duas frases, o carinho está feito, sem perda de tempo e sem constrangimentos. Conheço pessoas cuja timidez acaba parecendo falta de educação. A pessoa se atrapalha, não sabe o que fazer com as mãos nem que palavras usar, e acaba deixando passar a oportunidade de dizer "obrigado" ou "desculpe". O e-mail resolve isso. É o aliado número 1 dos tímidos, dos gagos, dos que ficam vermelhos por qualquer coisa, dos que não têm presença de espírito, dos bichos-do mato: pare, pense, escreva e envie. Pronto, você não é mais tímido nem gago nem nervosão: é um sujeito adorável. Pequenas gentilezas, na verdade, não são pequenas coisa nenhuma: serão sempre imensas. A gente fica esperando grandes ações pacifistas dos líderes mundiais e acaba não exercitando esse pacifismo no dia-a-dia, nas relações humanas. Algumas pessoas consideram a gentileza uma forma de submissão, de fraqueza, e acabam elegendo a arrogância e o desprezo como atitude. Pra estes, não existe solução, serão babacas eternos. Mas para quem anda esquecendo de exercer a gentileza apenas por falta de estímulo, está aí uma dica banal e eficientíssima: use o computador que está na sua frente. Gentileza não é puxa-saquismo. É um hábito elegante, dietético e despoluente: sério, perde-se peso existencial e até o ar que a gente respira fica mais leve.

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Martha Medeiros é gaúcha e ficou conhecida em todo o Brasil através do sucesso da peça Divã, estrelada por Lilia Cabral, baseada em um romance homonimo da autora. Colunista de dois jornais de grande circulação, um no Rio de Janeiro e outro em Porto Alegre, autora de 14 livros publicados, Martha tem o dom de colocar no papel idéias e situações que representam o cerne do nosso dia-a-dia. Relacionamentos, trabalho, amizade. Está tudo ali, destrinchado pela autora, nos fazendo olhar e repensar as pequenas coisas que fazem parte do cotidiano de cada um.

Fonte de Pesquisa:
http://www.cafeliterario.jor.br/perfil_literario/marthamedeiros.html
http://almas.terra.com.br/martha/martha_anteriores.htm

25 março 2006

Fabrício Carpinejar


NÃO HÁ COMO VOLTAR ATRÁS,
MUITO MENOS IR PARA FRENTE


Nada mais vai nos interromper. Os telefones, os gritos da rua, as visitas batendo na porta. Nada mais vai nos interromper. O terror de dizer, o terror de não dizer. Nada mais vai nos interromper. Minha ausência de culpa, seu excesso de culpa. Nada mais vai nos interromper. Sua pressa em fugir, minha pressa em entrar, o fingimento que não é conosco. Nada mais vai nos interromper. As conversas dos amigos, os dialetos de vidro, os desvios da cintura. Nada mais vai nos interromper. Os conselhos da família, seu casamento, as reuniões de trabalho. Nada mais vai nos interromper. Seus gatos, meus cachorros, os pássaros que morreram no domingo. Nada mais vai nos interromper. Pode esconder os lábios, que eu dou a volta no quarteirão. Nada mais vai nos interromper. Sua timidez, minha coragem, as esmolas dos pombos. Nada mais vai nos interromper. Pode envelhecer, que eu cedo meu lugar, cedo minha vida pelo teu lugar. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja a hora, mesmo que não seja a hora, mesmo que a gente tenha nascido para ficar longe. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja uma relação proibida, um contrabando, saudade usada. Nada mais vai nos interromper. Haverá unhas, haverá pele, haverá um jeito de escrever escondido e marcar um encontro. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que tenha que voltar ao início da fila. Nada mais vai nos interromper. As crianças, o trânsito, a falta de convicção. Nada mais vai nos interromper. Estamos tão rentes que recuar é ainda se tocar. Nada mais vai nos interromper. Sua respiração é como uma palavra indecisa. Nada mais vai nos interromper. A escama das lâmpadas, o gorjeio sofrido das árvores, a esperança da mentira. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que a gente desista, a gente se cale, a gente deixe de comparecer. Nada mais vai nos interromper. O orgulho, o preconceito, o capricho das roupas separadas. Nada mais vai nos interromper. Errar a música de ouvido, o instinto de se preservar, o arrependimento. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que um só ajude o outro a se perder. Nada mais vai nos interromper. Estar a favor de Deus, estar contra Deus, ajoelhar-se como um barco a seco. Nada mais vai nos interromper. Nossa falta de grana, os telhados das igrejas, o vestido branco. Nada mais vai nos interromper. Os despojos do dilúvio, os talheres tortos, os sapatos tontos na janela. Nada mais vai nos interromper. Pecar distrações, pescar desaforos, penhorar os anéis. Nada mais vai nos interromper. Contar segredos, guardar segredos, o degredo. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo regressando. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo partindo. Nada mais vai nos interromper. A leveza que some antes de entender, a letra que germina antes de rastejar, a crueldade da infância. Nada mais vai nos interromper. O desequilíbrio, o sarcasmo, a ânsia de fechar o livro. Nada mais vai nos interromper. As casas mal-assombradas, os barulhos dos becos, as bicicletas acorrentadas. Nada mais vai nos interromper. As cadeiras sobre a mesa, a denúncia, a fofoca. Nada mais vai nos interromper. Se é certo fazer, se é errado fazer, se é justo acreditar. Nada mais vai nos interromper. A educação, o sentido, o semáforo. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que não tenhamos provas de que houve alguma coisa, mesmo que o vento seja insinuação de chuva, mesmo que as pálpebras da água não substituam as nossas. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja aconselhável a amizade, mesmo que seja aconselhável esquecer, mesmo que seja aconselhável não mudar. Nada mais vai nos interromper. Nem a nossa própria resistência em aceitar que seremos para sempre esquisitos depois de nosso amor.


Este maravilhoso texto foi postado no blog do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar.
Recomendo como leitura diária: http://www.carpinejar.blogger.com.br/

11 março 2006

LEGADO, de Lya Luft



Eu quero o delírio.
Eu sou assim.
Não pretendo a integração, mas a abertura e a busca.
Encontrar pode ser impossível ou desinteressante.
Quero o pressentimento: comprimir a tela do computador e explodir o ponto e arquear o contorno varando os limites que a vida há de preencher e o sonho tornará possível.

Quero o delírio que faça as utopias virem sentar-se
na minha varanda e escrever no meu computador
quando a Razão estiver cansada,
quando a técnica parecer frívola,
ou quando eu estiver descrente.
Posso lhes dizer que somos muitos: em cada um de nós outros esperam apenas o momento de saltar fora,
tirar a máscara e revelar o que talvez nos amedronte.
E diremos: - Mas isso, isso aí, também sou eu?


Preciso admitir que a ambivalência nos salva de morrermos na poeira da mesmice. Também admito que seria mais fácil ser sempre o mesmo, seria mais doce levantar a cada manhã sem o conflito e morrer enfim sem ter jamais duvidado.
Mas não é tão simples. Desculpem mas não somos só isso.
Posso falar por mim ao menos, esta que escreve de um jeito e vive de outro, pensa de um modo mas faz diferente, tendo a marca da incoerência na testa e no coração a miragem da explicação para todos os desencontros.

Escuto o meu interior, onde personagens e narrativas aguardam que eu lhes confira a sua falsa realidade. Não falo de personagens e frases apenas, mas da consciência que procura motivo e sentido.
Estou bem acompanhada, comigo estão meus irmãos, gente da minha raça, todos os que entendem que inventar ou constatar não faz a menor diferença. Somos os doidos, os palhaços, os atores de nossa própria vida: escrevemos com sangue - nas paredes, nas páginas e nas telas dos computadores: tudo só existe na medida em que o tiramos das nossa tripas e parimos do Nosso Sonho.

Mas também sou uma mulher do meu tempo, e dele
quero dar testemunho do jeito que posso: na elaboração das minhas fantasias, mas igualmente escrevendo sobre a dor e perplexidade, sobre a doença e a morte, a palavra na hora errada e o silêncio na hora em que teria sido melhor falar - mas a gente não sabia.
E escrevo sobre sermos responsáveis e inocentes
em relação ao que acontece e ao Legado que deixamos. A ambivalência que atormenta, por outro lado levanta a poeira da resignação - e faz aparecer o nosso rosto.
E nos salva.

Este texto faz parte do livro PENSAR É TRANSGREDIR, de Lya Luft.

10 março 2006

"Caderno H" de Mario Quintana

A Arte de Ler
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

A Coisa
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

A Voz
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.

Ars Longa
Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.

Arte Poética
Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.

Biografia
Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.

Cartaz para uma feira do livro
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

Contradições
... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas.
Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

Cuidado
A poesia não se entrega a quem a define.

Das Escolas
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.

Destino Atroz
Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.

Do Estilo
O estilo é uma dificuldade de expressão.

Dos Leitores
Há leitores que acham bom o que a gente escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade, até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.

Dos Livros
Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

Dupla Delícia
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

Educação
O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.

Fatalidade
O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.

Feira de Livro
O que os poetas escrevem agrada ao espírito, embeleza a cútis e prolonga a existência.

Leitura
Se é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões.

Leituras
— Você ainda não leu O Significado do Significado? Não? Assim você nunca fica em dia.
— Mas eu estou só esperando que apareça. O Significado do Significado do Significado.

Lógica & Linguagem
Alguém já se lembrou de fazer um estudo sobre a estatística dos provérbios? Este, por exemplo: "Quem cospe para o céu, na cara lhe cai". Tal desarranjo sintático faria a antiga análise lógica perder de súbito a razão.

O Assunto
E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.

O Poema
O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.

Palavra Escrita
Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.

Poema
Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...

Poesia & Lenço
E essa que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!

Poesia & Peito
Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.

Refinamentos
Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.

Ressalva
Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.

Sinônimos
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

Sonho
Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Tempo
Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.

Veneração
Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.

Vida
Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.


Pensamentos extraídos do livro "Do Caderno H",
Editora Globo - Porto Alegre, 1973, págs. diversas.
Fonte: http://www.releituras.com/mquintana_cadernoh.asp

09 março 2006

Mario Quintana por Mario Quintana



Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

08 março 2006

Esse Ofício do Verso

O fato central da minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia...

Jorge Luis Borges



Creio que Emerson escreveu em algum lugar que uma biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos e aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta a vida quando se abrem suas páginas.

Li certa ocasião que o pintor americano Whistler estava num café em Paris, e pessoas discutiam como a heditariedade, o ambiente, a situação política da época etc. influenciavam o artista. E Whistler então disse: “A arte acontece”. Quer dizer, existe algo misterioso sobre a arte. Gostaria de conferir a suas palavras novo sentido. Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema.

“We are stuff as dreams are made on”
[Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos]
Shakespeare


Num dos diálogos de Platão, ele fala dos livros de um modo um tanto depreciativo: “O que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto”. Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou - felizmente para nós - o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor.

Chuan Tzu, filósofo chinês, sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.

"Ode a um rouxinol de John Keats

Não nasceste para a morte, Pássaro imortal!
Nenhuma geração faminta te espezinha;
A voz que ouço nesta noite fugaz foi ouvida
Nos dias antigos por imperador e palhaço:
Talvez a mesmíssima canção que se insinuou
Pelo triste coração de Rute, quando, saudosa de casa,
Ela se desfazia em lágrimas entre o milharal alheio."


Pensava saber tudo de palavras, tudo de linguagem (de pequeno, a pessoa acha que sabe muitas coisas). Mas aquelas palavras foram uma revelação para mim. Claro, eu não as entendia. Como poderia entender aqueles versos sobre pássaros - sobre animais - que eram de algum modo eternos, intemporais, porque viviam no presente? Somos mortais porque vivemos no passado e futuro - porque lembramos um tempo em que não existíamos e antevemos um tempo em que estaremos mortos.

Aqueles versos chegaram até mim através de sua música. Eu pensava que linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer se estava feliz ou triste etc. Mas quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem podia também ser música e paixão e assim me foi revelada a poesia.

Todos nós conhecemos The red badge of courage, a história de um homem que não sabia se era covarde ou valente. Chega então o momento e ele descobre quem é. Quando escutei aqueles versos de Keats, senti de repente aquela grande experiência. Sinto-o desde então.

Quer dizer, muitas coisas aconteceram comigo, como a todos os homens. Tirei prazer de muitas coisas - de nadar, de escrever, de contemplar um crepúsculo, de estar apaixonado e assim por diante. Mas, de algum modo, o fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia.

Todos os textos e poemas digitados fazem parte do livro “Esse Ofício do Verso” de Jorge Luis Borges. Livro este, que é formado pelo conjunto de palestras proferidas pelo escritor e poeta Argentino, em 1967/68, na Universidade de Harvard, EUA.